Cantora conimbricense sobre ao palco do MATE no dia 22 de outubro. Texto: Keissy Carvelli Personagem principal de uma nova página na tradição do Fado de Coimbra, Beatriz Villar, sem capa académica e de vestido, tem feito de sua voz feminina um meio para inovar os rumos de uma história traçada pela voz masculina. Com o seu primeiro álbum, Viragem (2022), vieram também os desafios de virar a pesada página de líricas que, por óbvio, são também marcadas por uma voz masculina dirigindo-se a uma interlocutora mulher. Neste processo de escolha dos fados de Coimbra que coubessem na voz e na vivência da artista, o estudo, o tempo e a diversão foram peças chaves. Para além destas, a incontornável excelência dos músicos e arranjadores, entre eles Diogo Mendes, um professor e incentivador durante o percurso artístico que levou Beatriz Villar a decidir dedicar-se ao Fado conimbricense. Inspirada pelo frescor que a musicalidade pode proporcionar, Beatriz Villar afirma que o próximo concerto, a ocorrer no MATE, trará novidades ao público. A tradição do cancioneiro português dará lugar também a instrumentos variados e a sonoridades populares. No aquecer da guitarra, entre um ensaio e outro, conversamos com Beatriz Villar sobre o encontro com o Fado de Coimbra, sobre o processo criativo do primeiro álbum e sobre os desafios de ser uma mulher a encarar uma tradição demarcada pela exclusividade masculina. RÁDIO PESSOAS: Como se deu o seu encontro com o Fado de Coimbra, ou do Fado de Coimbra consigo?
Beatriz Villar: Eu costumo sempre dizer que não fui eu que escolhi o fado, foi o fado que escolheu a mim. Eu desde muito cedo sempre cantei outros estilos, sempre ouvi muito fado, mas talvez por achar que era um estilo musical tão nosso, tão português, tão próprio sempre tive um bocadinho de receio em cantá-lo. E depois escolhi cantar o fado de Coimbra, que é cantado maioritariamente por homens, aí a responsabilidade tornou-se ainda maior. Eu confesso que foi uma decisão um bocadinho complicada, mas eu conheci na altura, a escola onde o meu guitarrista de guitarra portuguesa dava aulas, o Diogo Mendes, e ele incentivou-me a cantar Fado de Coimbra. Mas eu iniciei o meu percurso antes disso, num projeto de canção de Coimbra que se chama Na Cor do Avesso, portanto não era mesmo o fado tradicional de Coimbra e então surgiu o encontro com o Diogo e aí sim a abordagem aos fados tradicionais e a ida ao Got Talent Portugal. Isso acabou por ser também um input muito grande, foi quase como a resposta de que eu estava a fazer bem. Eu precisava de ter essa resposta por parte dos outros e a oportunidade do programa deu-me isso, então por que não? Então gravei o disco. RP: Como foi o processo de criação do seu primeiro álbum? Sobretudo tendo em vista que se trata de canções muito marcadas pelo gênero masculino como intérprete. BV: Foi um processo muito longo, mas agora também penso ainda bem que foi nesta altura porque tinha mesmo que ser assim. O processo criativo foi um bocadinho complicado no sentido em que todos os fados que estão gravados no disco estavam construídos para uma voz masculina cantar. O mais complicado foi passar aquele arranjo para um que funcionasse numa voz feminina e aí entrou muito trabalho por parte dos meus músicos, pelos quais eu tenho uma admiração enorme e uma gratidão enorme. Acabámos por conseguir arranjos que ficaram perfeitos na minha voz. Este processo foi o que me fez mergulhar dentro do projeto. Tive que ouvir muita música, tive que ouvir muitos fados, tive que perceber quais é que eram os que fariam mais sentido para mim, porque mesmo a lírica está escrita na perspectiva de homem para mulher. Se for uma declaração de amor é “ao meu amor minha linda feiticeira”, se for eu a cantar isto, para mim, no meu no meu caso pessoal, não faria sentido, então eu tive que descartar muitos dos fados porque a lírica não faria sentido. Foi um processo divertido, eu gostei muito e estou muito contente com o resultado. RP: Como avalias os desafios de entrar no mundo de um cancioneiro tradicionalmente ligado aos homens? BV: Foi desafiante sem dúvida. Eu já tinha visto mais mulheres a tentarem fazê-lo, só que os tempos eram outros. Manuela Bravo, Maria Teresa de Noronha, Cristina Cruz, são nomes de outras mulheres que já cantaram fado de Coimbra e a imagem que eu tinha era de rejeição à tentativa delas no passado. Então, por isso é que eu estava tão assustada com esta minha decisão. Contudo, eu percebi que os tempos são outros, eu não senti rejeição ao meu projeto, claro que houve algumas críticas, mas houve muito mais críticas pela forma como eu me apresento do que propriamente à forma como eu canto. RP: E qual a sua opinião sobre a questão principal em relação ao ‘género’ do Fado de Coimbra? BV: Eu continuo a manter a minha opinião. Eu acho que o facto de serem os homens a cantar o Fado de Coimbra e dessa tradição ter seguido em frente e ter andado dessa forma não é uma questão de género, ou seja começaram os homens a cantar Fado de Coimbra porque eram só os homens que estudavam naquele tempo e então a música começou a surgir através deles. As mulheres começaram a estudar já há muito tempo, portanto isto já devia ter mudado há muito tempo. Aí sim está a questão. Mas eu não considero que seja uma questão de género. Eu acho que o que mais incomoda as pessoas é sentirem este rompimento perante a história. Eu só acho que talvez as pessoas devam olhar para isto não como romper com a história, mas como uma página nova à história atual, ao nosso tempo. Tornar a música mais contemporânea, torná-la atual, mais fresca, talvez também haja uma necessidade de profissionalizar um bocadinho mais este estilo musical porque é sempre muito ligado à academia, e espero que não me entendam mal. Como eu me apresento sempre sem esse traje, sem a capa traçada, sem aquela roupa toda que as pessoas estão habituadas, isso foi alvo de muita crítica, por usar vestido ou por não levar a capa. As pessoas ligam um bocadinho mais a isso. E eu acho que se calhar não deviam ligar tanto. RP: O que podemos esperar do seu concerto no MATE? BV: Eu estou muito ansiosa. Acho que é, sem dúvida, uma iniciativa extraordinária, sinto-me assim sortuda por poder fazer parte desse evento e ainda por cima cantar na minha cidade. Para o concerto eu prometo algo diferente, algo fresco, sempre respeitando a raiz do fado tradicional de Coimbra, mas vai ter algumas coisas que são fora também. É um trabalho que estamos a preparar e ainda não apresentei algumas dessas canções, vão ser estreia em Coimbra. Vou levar a minha banda completa, portanto vai ser assim um bocadinho mais do que só aquele fado tradicional. O meu concerto vai ser especial. É esta a palavra. Vai ter muito amor muita diversão. O fado de Coimbra é sempre um estilo musical relacionado a algo mais pesado, mais triste, eu quis desmistificar um bocadinho isso e repito: sempre mantendo a raiz e respeitando o fado. RP: Isso que dizes me remete a uma consciência de identidade sobre o que tu queres mostrar ao público. Certamente será um excelente concerto. E por falar em identidade: qual palavra te define como artista? BV: É uma pergunta difícil, hã? É mesmo difícil, se calhar nunca pensei nisso. Mas eu diria que a palavra é verdade. Eu acho que se nós artistas, seja qual for a arte, conseguirmos colocar as nossas dores, as nossas alegrias, as nossas vivências na arte que estamos a fazer podemos ser um canal que transmite algo às outras pessoas. Eu diria verdade e amor. São essas as grandes palavras que me caracterizam enquanto artista, enquanto a Beatriz Vilar que está em palco.
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«Bandua é uma entrega de uma visão musical sobre a junção da ancestralidade com o contemporâneo»13/10/2023 Texto: Keissy Carvelli Da união dos cantares portugueses típicos da Beira Baixa com a música downtempo berlinense, o projeto Bandua, criado por Bernardo D’Addario e Edgar Valente, faz emergir um universo muito particular em que a ancestralidade e o contemporâneo convergem e convidam a uma experiência única. Como ressalta Edgar Valente, um grande conhecedor do cancioneiro português, Bandua também tem como princípio revalidar uma ecologia dos saberes há muito tempo perdida. Bandua extrapola o campo musical e adentra com naturalidade ao campo social ao reler e reinventar cantares tradicionais, reconectando passado, presente e mirando o futuro. Seja no primeiro álbum Bandua (2022), seja nos concertos mais recentes, a dupla de músicos aposta sempre numa experiência imersiva, que poderá ser vista a olhos nus no MATE Festival, no dia 20 de outubro às 20h na Lufapo Hub. Conversamos com Bernardo D’Addario e Edgar Valente sobre a natureza deste projeto e, claro, também sobre as expectativas para a apresentação que se dará em breve no MATE Festival. RÁDIO PESSOAS: O primeiro álbum, Bandua (2022), mistura a música eletrônica com os cantares portugueses. Como Bandua sentiu a recepção do público em relação a essa sonoridade tão distinta? Bandua (Edgar Valente): Eu acho que em geral a forma como o público recebeu o projeto foi um pouco mais positivo do que esperaríamos. Sentimos que a forma como as pessoas recebiam, mesmo que fossem os nossos amigos, era d euma forma muito surpreendente. Agora, acabou por ser surpreendente a forma como chegou a um público mais transversal, porque de alguma forma essa lógica da música eletrônica, principalmente essa lógica própria da música downtempo, e do universo da música tradicional, ambos têm um aspecto de público que não é tão abrangente. E nos surpreendeu ter chegado, em apenas um ano, a um evento mainstream como foi o Festival da Canção cá em Portugal. Agora, por outro lado, agora que vivemos esse processo conseguimos compreender melhor porque isso acontece. De alguma forma, essas lógicas têm a ver também com o território e com a forma como conseguimos encontrar pontes entre o passado, o presente e até o futuro, acho que são modos cada vez mais urgentes de pensar a nossa sociedade, não só musicalmente, mas de maneira geral. Este tipo de exemplos do que estamos a fazer, que encontra um meio termo de forma equilibrada, é importante por dar várias luzes, até no contexto social, até mesmo por uma coisa muito básica que é a defesa do território e da vida, a ecologia dos saberes, das coisas antigas. Há de se lembrar que essa coisa dos cânticos, que hoje é romântica, há de não se esquecer que até tempos atrás foi bastante ignorado e já foi de alguma forma muito desvalorizado. É bom que de alguma forma estamos a contribuir também para uma perspectiva social, que volta a ter em conta todo tipo de saberes, inclusive daquilo que está expresso nos cantares e nas coisas que não são tão intelectuais, mas que são mais de coração. RP: Esse processo perpassa também por uma pesquisa das raízes musicais, das ancestralidades musicais. Como se deu esse processo? BANDUA (Bernardo D’Addario): Eu e o Edgar viemos de polos diferentes nessa matéria. O Edgar tem uma história mais completa de manusear, tocar e cantar músicas de raiz portuguesa, já a minha história vem de um lado mais do eletrônico, da percussão, no entanto, despertou uma curiosidade em mim no processo de criação de pegar a raiz portuguesa e inseri-la na música portuguesa. A pesquisa, pelo menos da minha parte, surgiu muito da curiosidade que eu tinha de história e da raiz do meu avô, pai da minha mãe, que era lá da Beira Baixa. Quase de uma maneira ingênua, foi se criando pouco a pouco uma base musical que depois foi integrada a essa parte cantada do Edgar, com essa parte de música portuguesa que ele já tem. De um certo modo, Bandua nasceu dessa junção entre a minha curiosidade e o meu backgroud de percussão e toda a sabedoria que o Edgar já tinha por esta mais conectado com essa pesquisa do que eu. Com o passar do tempo, fomos conhecendo pessoas, gravando coisas, colocando letras, memórias, e foi criando essa personalidade que é Bandua. BANDUA (EV): Houve um processo fluido de recolha e escolha das músicas, e dentro dessa fluidez houve também um critério de escolha das canções, pelo menos particularmente, as músicas que demonstram a relação das pessoas com o seu meio envolvente, com a natureza que as acolha. Não que eu ou o Add’ario sejamos pagãos, não tem a haver com isso, mas interessa mais explorar as relações mais pagãs que tinham respeito a toda a conexão que existia, tanto a nível com a natureza como espiritual das pessoas de uma forma mais autêntica, mais do que aquelas impostas pelo catolicismo. Além dessa seleção que fizemos, houve também uma reescrita, há vários desses poemas antigos que são escritor por nós em que trocamos algumas das palavras que eram mais alusivas ao contexto religioso católico, para outras coisas que faziam mais alusão aos meios naturais que envolviam essas comunidades. E isto na verdade é quase voltar a devolver algumas dessas canções, e escritas e poemas ao sítio de onde elas eram originalmente. Então, as criações derivam de um processo de ressonância e foi sendo sempre assim, de uma forma fluida e de uma forma de voltar a relembrar todo esse conhecimento e a sensibilidade ancestral que existia. RP: A dimensão humana é também um fator importante, então? BANDUA (EV): Arranjamos justificações dentro das nossas cabeças, mas elas derivam dentro de um processo de ressonância. É uma forma de voltar a relembrar todo esse conhecimento e a sensibilidade ancestral, porque essas músicas não eram feitas pelos burgueses, era mesmo pelo povo. Esta coisa de alguma forma me interessa muito, a revalidação destes saberes. Estes poemas caracterizam isso mesmo, os traços mais generosos, humildes e autênticos do ser humano. Acima de tudo quisemos que esse fosse um disco que, apesar da parte eletrônica, que tem as máquinas, tem também um lado muito humano. E esse foi também um critério de seleção, de letras que fossem o mais humanas possíveis. RP: Qual a história por trás do nome Bandua? BANDUA (BA): Bandua é o nome de uma entidade antiga da Península Ibérica e o propósito dele era o de atar as pessoas, o comércio e os eventos. Bandua era venerado como uma entidade que era tanto homem quanto mulher, criando um pouco de uma identidade andrógena que a gente também procurou trazer para dentro do palco. RP: Há projetos futuros do Bandua? BANDUA (BA): Estamos há algum tempo num processo de composição alongado. Eu e o Edgar temos um processo de construção muito orgânica, e o nosso objetivo é, se tudo correr bem, provavelmente ano que vem vamos fazer um segundo álbum com várias músicas que já tocamos ao vivo. Mas já temos muito material gravado também, set inteiros, que a gente vai começar a trazer cá para fora. Enfim, a gente está com muito material para fazer um processo alongado de lançamento no ano que vem. RP: O que Coimbra pode esperar o show do Bandua no MATE? BANDUA (BA): Vamos apresentar no MATE um show que temos apresentado no último ano e que é uma experiência imersiva daquilo que é o mundo de Bandua, não só com áudio, mas com audiovisual também. RP: Com uma dimensão de contato com as raízes, suponho. Bandua (BA): O nosso trabalho é também um trabalho de preservação, da gente pegar em algo que é outrora antigo, que pode ser esquecido, e a gente poder traduzir isso para um contexto mais contemporâneo. De alguma forma também apresentar isso para pessoas que possam guardar e preservar isso e continuar levando essa música para frente. Então, de certa forma, o nosso show também é um pouco isso, trazer essa ancestralidade para um contexto mais contemporâneo. RP: E como você percebem a importância de apresentar o Bandua num evento como o MATE, que tem como natureza a conexão de diversas culturas e artes? Bandua (EV): Para nós, na leitura e no momento presente do projeto, o Mate tem papel importante e faz sentido nossa passagem pelo MATE porque nesse momento temos mesmo vontade muito grande de internacionalizar o projeto, de levarmos também uma visão sobre Portugal que é esta que nós trazemos, que sentimos confiança que é coesa o suficiente para poder apresentar uma outra forma de ver Portugal musical e culturalmente, que não tem só a ver com o Fado ou com aquelas expressões mais características que tem estado dentro do circuito de world music nas últimas décadas. E estamos aqui super apto a isso. RP: Como vocês definiriam o que é Bandua? Bandua (BA): Bandua é uma entrega de uma visão musical sobre a junção da ancestralidade com o contemporâneo. Da música que era cantada pelos nossos avós, mas que hoje em dia a gente canta. Então, como é que a gente apresenta algo antigo, mas que tem relevância para um público e para o tempo de hoje. Bandua é um projeto que procura explorar essa área, esse conceito e fazendo de uma forma que seja divertido e é uma forma também um pouco mais espiritual. Naturalmente pela origem pagã tem o peso da terra, tem o valor espiritual e, claro, também valor intelectual para quem quer mergulhar. E claro, de certa forma também honrar o nome de Bandua que atava os nós entre as pessoas, porque o que fazemos aqui também é atar esses mundos mais ancestrais, de dança, de expressão e de espiritualidade também. Bandua, para mim, é um pouco disso tudo. MATE Festival 20 de outubro (sexta-feira) ACTIVIDADES 14h00 Credenciamento 14h30 Abertural Oficial 15h30 PAINEL - Redes e Associações: A representatividade prática da coletividade 16h30 SHOWCASE - Erick Endres 17h00 PAINEL - Territórios Criativos: Estruturas de desenvolvimento e indicadores 18h00 Ponto de Encontro by Coolectiva 21h00 Exposição no Escuro CONCERTOS 18h00 Lika 18h00 Tor4 20h00 Bandua LOCAL - Lufapo Hub - R. Cel. Júlio Veiga Simão 3025-307 Coimbra A programação completa do MATE Festival está aqui.
Cantora, compositora, guitarrista e criadora de aplicativo para o ensino de guitarra, Lika traz na essência o propósito do MATE Festival Texto: Keissy Carvelli Nascida no Cazaquistão e há oito anos em Portugal, a cantora, guitarrista e compositora Lika traz na essência de suas atividades artísticas o propósito do MATE Festival, encontro internacional de música, artes, tecnologia e educação. Lika é a primeira artista a subir ao palco do MATE na sexta-feira, dia 20 de outubro, às 18h, na Lufapo Hub. Lika flerta com essa tríade muito naturalmente. Acaba de lançar o primeiro single em Língua Portuguesa, a canção «Música da barragem», ao mesmo tempo em que mostra ao mundo sua mais nova criação: uma aplicação de ensino de guitarra. Fluindo pelo mundo infinito da música, Lika equilibra seu tempo entre os concertos, o ensino de guitarra e as canções infantis que têm produzido recentemente. Em outubro, dá início a uma digressão pela Alemanha e pelo sul e norte de Portugal com cum concerto que, além da canção mais recente, reúne também as faixas consagradas em Back to zero (2019). A digressão chega a Coimbra ainda em outubro, no MATE, data já aguardada pela cantora que, pela primeira vez, levará suas canções para uma feira de artes dessa natureza. Com referências que vão do jazz a Jimmi Page, e uma trajetória que vai de bandas de punk rock ao Hot Club de Lisboa, Lika deixa-nos adentrar nas histórias de suas origens musicais e de seus processos criativos na entrevista a seguir. RÁDIO PESSOAS: Back to zero é o seu primeiro álbum e acaba de ser lançado. Para aqueles que ainda não te conhecem, conte-nos um pouco essa história que deságua neste primeiro álbum. Lika: É uma longa história, mas vou tentar fazer o meu melhor. Eu quando tinha 11 anos comecei a tocar guitarra, foi meu tio quem me mostrou meu primeiro acorde e foi aí que começou mesmo o meu amor pela música. Não tive aquele problema da vida de escolher o que realmente quero fazer nesta vida. Logo percebi que isto é que é. Depois montei muitas bandas, tocamos punk rock, música clássica em rock, mas a maior parte era sempre música original. Porque acho que a coisa principal para qualquer artista é poder partilhar sua arte, espalhar o que tem dentro. Já gravámos quando vivi no Cazaquistão, mas meu primeiro álbum a sério comecei a gravar em Lisboa, quando entrei no Hot Club. Depois conheci músicos incríveis, montámos um projeto, depois meu professor tornou-se meu guitarrista e começamos a gravar no estúdio dele. RP: E por que Back to zero? Lika: Esse álbum chama-se Back to zero porque é assim como senti-me quando cheguei em Lisboa, era como se eu estivesse deixado toda a minha vida para trás, no Cazaquistão, e comecei a minha vida cá, em Lisboa, em Portugal. Mas gostei desse novo início e gosto de como está a correr. Realmente estamos a continuar com a minha banda, estamos a lançar músicas novas, acabámos de lançar minha primeira música em português, que se chama “Música da barragem”, já disponível em todas as plataformas. Estou mesmo feliz com o processo. RP: E qual foi o ímpeto para esta primeira música em Língua Portuguesa? LIKA: Era muito natural escrever em inglês e na minha língua mãe, o russo. Mas como eu estou cá, em Portugal há oito anos, eu passo a pensar em português. Eu percebo que há algumas frases, maneiras de dizer que são tão bonitas na Língua Portuguesa que se eu dissesse a mesma coisa em inglês já não soaria tão bonito. Eu prefiro deixar aquele pensamento, aquela rima, aquele som mesmo em português. O que acho mais importante é a minha mensagem. Em “Música da barragem” eu tive tanta inspiração, eu a escrevi ao pé da Barragem de Montargil e foi um momento muito importante na minha vida. É mesmo o que estou a sentir ultimamente, que o tempo corre muito rápido, que eu corro muito rápido e que o mundo está a girar com tanta pressa que me apetece parar neste momento e dizer: para o tempo, desfruta essas emoções, esse amor, este momento. Se essa música nasceu na Língua Portuguesa, não quero ter de escrever em outras músicas. E estou a escrever mais e mais músicas em português. RP: Citastes várias frentes de ritmos, do rock ao jazz. Como foi esse processo de construir o disco com todas essas influências que têm e alcançar uma sonoridade própria?
Lika: As influências do meu álbum começaram muito para trás. Eu desde sempre gostei muito da música punk, até do punk rock começando nos anos 1970. Depois houve uma parte da minha vida que eu era louca por jazz, ouvia só jazz e nada mais. E ainda por cima tenho a sorte gigante de tocar com músicos incríveis formados no jazz, mas que gostam de coisas completamente diferentes. Um gosta de hip hop, outro de metal, outro jazz rock. Isso tudo influencia a mim e a nós como todo enquanto estamos a ensaiar e acabamos por dar inspiração um ao outro. Minha maior influência são os grandes guitarristas, por exemplo Mike Sterne, o Jeff Back, o Jimmy Page do Led Zeppelin (o meu primeiro amor da vida) e por causa dele eu sempre quis comprar um Gibson Les Paul (risos). E essas influências sempre mudaram os rumos da minha vida, a maneira como eu penso nas frases que vou tocar. Mas também gosto imenso da música soul, de Joss Stone, por exemplo. RP: Como esse processo criativo se manifesta cotidianamente? Lika: Infelizmente não há nenhuma fórmula para isso. Mas, realmente, às vezes sinto algum tipo de click de algo que faz sentido. E isso é o que eu partilho com meus alunos, eu dou aula de composição e escritura de músicas e claro que a pergunta mais importante é: como é que eu começo uma música? E começas assim, quando sentes que alguma frase que ouvistes faz sentido para ti começas a criar história à volta, porque tudo o que queremos é ouvir uma história. Se vamos olhar para as maiores músicas do mundo, elas são histórias de tipos diferentes de amor (e não estou a falar apenas do amor romântico). Mas também uma das coisas que ensino é que este click não acontece do nada. Para obter esta inspiração este hábito tem de ser ensaiado, tem de ser praticado e o que nós fazemos nas aulas é escrever uma musiquinha pequena todos os dias. Não interessa o que ela vai ser, é um exercício. RP: E para além da canção nova, “Música da barragem”, há outros planos para o futuro? Lika: Eu tenho muitos projetos além disso. Por primeiro, acabei de lançar a minha aplicação de aulas de guitarra (Lika World Academy). De repente surgiu essa ideia, porque dou aulas no meu estúdio, tenho alunos do mundo inteiro (também no modo online) e isso é tão fascinante, tão interessante para mim. Há muitos anos eu nem podia imaginar em ser professora. E agora estou a gostar imenso. A aplicação está disponível em três língua: português, inglês e russo. Além disso, tenho um projeto de música para crianças – que faz parte de um projeto chamado “Bicho de sete cabeças”. E ainda faço os meus concertos. No início de outubro, farei uma digressão pela Alemanha, também norte e sul de Portugal. E, claro, estou muito feliz em ir para Coimbra e fazer o concerto no MATE. RP: Tem muita relação essa sua diversidade artística (concertos, ensino, criação de aplicativos) com o propósito do MATE, que busca justamente incentivar uma economia criativa envolvendo educação, arte e tecnologia. Lika: Música é um mundo gigante, incrível, sem fim. RP: E qual a expectativa para a participação no MATE? Lika: Estou com muita esperança de conhecer lá muitas pessoas, porque acho que pessoas do show, da arte, da música, isto tudo nós carregamos uns aos outros. E às vezes basta uma palavra para ajudar ao outro e eu espero bem encontrar lá novos amigos, pessoas com quem eu possa trabalhar, partilhar mais uma vez minha arte. Estou mesmo feliz por essa oportunidade. RP: E para fechar essa nossa conversa, quero lançar-te a seguinte pergunta, que é também um desafio: quem é Lika? Isto é, em poucas palavras, como tu te defines como artista? Lika: Eu também queria saber o que é que eu sou (risos). Eu sei que eu quero sempre guardar aquela Lika que eu conheci na infância, nunca quero perder aquela menina. Ainda por cima, Lika é o nome curto que a minha família sempre me chamou e por isso passou a ser meu nome artístico também. Eu quero ser só eu, para sempre. Está já a arrancar, no dia 20 de outubro, o MATE – Música, Artes, Tecnologia e Educação, encontro internacional de artistas, empreendedores, marcas e serviços que certamente movimentará Coimbra no ritmo da criatividade. Fruto da cooperação entre quatro parceiros provenientes de três países, inaugurando, em 2023, o projeto tem uma dimensão europeia e um espírito global desenhado para fomentar o inter-conhecimento, capacitação, tutoria e estabelecimento de negócios no âmbito das Indústrias Culturais e Criativas (ICC), com especial ênfase para o sub-setor da Música. O MATE Europe possui uma dinâmica própria, através de várias iniciativas como a troca de experiências, os contactos, as informações e o estabelecimento de sinergias entre os vários agentes das indústrias culturais e criativas europeias, nomeadamente, os países parceiros deste projecto: Portugal (Região de Coimbra), Espanha (Galiza) e Grécia (Tessalónica). Esta dinâmica pretende provocar e estimular reflexões, apresentar e desenvolver projetos inovadores, propiciar o diálogo, as visões e experiências nas indústrias culturais e criativas, principalmente no sub-setor da Música. Desta dinâmica, espera-se fazer emergir uma rede e uma plataforma de novas oportunidades de negócio para aqueles que pretendam comprar, vender, conceber e promover o seu projeto, negócio ou empreendimento na área da música. O evento incluirá Talks, Palestras, Pitching, Conferências, Lançamento de Livros, Workshops, Mentorias e Concertos/Showcases. Destaque da programação de concertos fica por conta de grandes nomes da música popular brasileira e portuguesa, como Mateus Aleluia, Yamandu Costa e António Azambuja, e não menos de artistas contemporâneos já consagrados da world music, como Beatriz Villar, Bandua, Magupi, Crua. Confira a programação completa do Festival MATE – Portugal. A primeira edição portuguesa do MATE Festival, anuncia a sua programação completa que incluirá 10 painéis, em formato conferência com o propósito de debater sobre temáticas relacionadas desde o património, territórios criativos, artes, movimento associativista, redes colaborativas, mercado da música, cultura tradicional e popular, inteligência artificial e ao trans humanismo.
As actividades decorrem durante 5 dias numa lógica de percurso pela cidade de Coimbra, iniciando no Lufapo Hub e passando pelo Salão Brazil, o Museu Nacional de Machado de Castro e o Convento São Francisco. É vontade desta edição do MATE em Coimbra contar com a presença de dezenas de profissionais, especialistas, entidades, associações, empresas e representantes da indústria musical e cultural internacional. Forró dançante e debochado de Getúlio Abelha aterrissa no Salão Brazil em setembro para primeira turnê internacional. Texto: Keissy Carvelli Fotos: Sillas h. Ao definir-se como «um furacão», Getúlio Abelha diz muito sobre a força de sua música e de sua performance, uma mistura fina de forró, temáticas LGBTQIA+ e beats contemporâneos. É este o lugar de invenção do músico nascido no Piauí, radicado no Ceará e, mais recentemente, instalado em São Paulo, de onde tem partido para incendiar a cena dos maiores festivais brasileiros. Sem receio de ousar e de experimentar sonoridades, o compositor afirma-se como pertencente ao grande movimento do forró, ainda que assuma caminhar numa via paralela à grande indústria que move um dos gêneros musicais nordestinos mais difundidos mundialmente. Getúlio Abelha sobe ao palco do Salão Brazil, no dia 29 de setembro, para apresentar o disco Marmota (2021). Já ansioso pela sua estreia internacional, Abelha espera cativar o público com o seu deboche que, acima de tudo, traz mensagens contra a homofobia e a favor da liberdade, da dança, e da ousadia, elementos indispensáveis nos dias de hoje. Antes de aterrissar em Portugal, o furacão Getúlio conversou com a Rádio Pessoas. Confiram! Rádio Pessoas: Antes de tudo, há aqui uma curiosidade imensa: qual a história por trás do seu nome artístico “Abelha”? Getúlio Abelha: Eu decidi colocar “Abelha” porque é o sobrenome artístico de uma cantora de Forró que integrou a banda Calcinha Preta [trata-se de Paulinha Abelha, cuja morte prematura, em 2022, impactou o mundo do forró]. Eu quis criar um nome que não fosse negar que minha maior influência é o forró, então escolhi essa diva, porque fui apaixonado por ela desde novinho. Acho também que o nome é alto-astral. RP: É nítida a influência do Forró na sua musicalidade, embora você o leve o para um outro lugar com suas letras, seus videoclipes. Como você construiu essa musicalidade? GA: Sou dessa geração que começou a debater muitas questões, principalmente as de LGBTfobia. A minha vivência própria não era a vivência que aparecia nas letras de Forró, mas a minha vivência musical era o Forró. Sou um artista muito curioso, tento buscar coisas novas, coisas que não estão sendo feitas ainda e encontrei a oportunidade perfeita para misturar esse estilo musical com temas e com experimentos novos que não existia ainda. Isso me motivava. Mas eu também não digo que tenho ‘apenas’ influência do Forró, eu gosto de bater na tecla de que realmente eu faço Forró. Principalmente, porque penso nas bandas que surgiram nos anos 1990, como Calcinha Preta, Magníficos, Limão com Mel, elas em algum momento foram consideradas estranhas em relação ao Forró feito por Luiz Gonzaga, por exemplo. Certa vez, um jornalista afirmou que eu não fazia forró. Eu respondi que diziam essa mesma coisa sobre essas bandas que colocaram teclado, guitarra, baixo e bateria no lugar da sanfona, zabumba e do triângulo. Estou levando o Forró para outro lugar e isso me interessa de todas as formas, sonoramente e esteticamente. RP: Quando você passou a difundir sua música, inicialmente no Ceará, como você sentiu a recepção do público e da indústria da música em relação a essa sua linguagem própria dentro do Forró? GA: Eu sinto que a recepção do público, em geral, é sempre bem melhor do que a recepção da indústria do Forró. Nunca fiz parte desse circuito. Mas o público em si, principalmente o cearense, me abraçou muito facilmente desde o primeiro videoclipe. Também porque eu decidi fazer tudo de um lugar muito bem-humorado e o Ceará tem essa tradição do humor, da leveza, do auto deboche, o que facilitou muito. Porque por mais que eu fale de temas muito sérios em algumas músicas, eu acredito que a dose de humor que eu coloco ali disfarça muito e faz com que as pessoas escutem absurdos sem nem perceber. RP: O deboche e o humor são muito presentes nas suas letras. Esse traço é reforçado principalmente nos videoclipes que você faz, nas narrativas que você cria, que são, a propósito, muito particulares na linguagem, nos recursos utilizados. Como surge essa sua relação com o cinema pela via dos videoclipes? GA: Eu escolhi fazer a música não puramente pela música, apesar de ser um lugar que eu amo. Mas eu vi na música um lugar onde eu poderia expressar todas as linguagens. Então, me considero cantor tanto quanto diretor, tanto quanto performer e compositor. E aí certamente o videoclipe é o lugar onde eu posso trabalhar tudo o que eu quero, além de só escrever e cantar uma música. O videoclipe eu posso criar imagens, narrativas, figurinos. Então, para mim, foi algo que veio junto com a música. Quando eu crio uma música eu já tenho em mente também as cenas que eu quero criar. RP: E esse traço de humor, foi proposital, planejado, ou surge de um processo natural? GA: Eu preciso dessa explosão e acho que o humor é a maneira que eu encontro de ser mais delicado para falar verdades, torna tudo mais leve. O humor é esse lugar natural, faz parte de mim, da minha personalidade. Mas tenho tido a impressão de que estou me expondo menos a esse lugar de deboche, que estou ficando mais sério do que já fui um dia. Mas não quero perder isso. RP: Como se dá o processo do Getúlio compositor? Lembra-se de quando começou a compor e de como chegou ao compositor que é agora?
GA: Desde muito jovem eu gostava de fazer poemas. E adolescente eu comecei a brincar de fazer muitas paródias, mas tinha muita pornografia. O tempo foi passando e eu entrei no teatro, a Universidade deu uma filtrada em algumas coisas e quando eu decidi abandonar o curso e os espetáculos e focar na música eu encontrei o equilíbrio das sacadas certas, do humor, das críticas. RP: E atualmente em que fase está esse seu processo criativo? GA: Agora estou começando a elaborar um segundo álbum e estou tentando partir do instrumental, depois melodia, e aí escrever as letras. RP: Vem álbum novo por aí, então. Já tem uma previsão de quando será lançado? GA: Estamos tentando fazer tudo mais rápido, em outro tempo. Ainda não tem título, porque ainda não sei exatamente sobre o que eu quero falar, por isso as letras vão ficar para o final. Estou muito livre e criativo na questão sonora. A ideia que tenho por trás é um Frankenstein, porque quero trazer vários estilos musicais, forró com funk, forró com emo, forró com dance. Quero experimentar isso, criar um monstro de materiais diferentes. RP: O que o público de Coimbra e do Salão Brazil pode esperar do seu concerto e da sua performance? GA: É a primeira vez que faço show fora do Brasil, estou um pouco nervoso, mas eu tenho uma bagagem de performances muito legal. Vou gostar da possibilidade de fazer um show mais próximo das pessoas, como no Salão Brazil. Eu só preciso entender como vou distribuir toda a minha energia no show todo, para não ficar um furacão o tempo todo (risos). RP: Você tem esse ímpeto do novo, de experimentar sonoridades novas no Forró. Surge como reflexão para você a questão: o que é possível ainda fazer de novo dentro do Forró? GA: Eu me sinto muito tranquila quanto a isso. Inclusive, acho que não tenho tido tempo para fazer tudo o que eu quero fazer. Eu não tenho medo, eu acho realmente infinitas as possibilidades, mesmo na linha da indústria do Forró tradicional, super heterossexual, eles próprios estão fazendo coisas novas, com batidas novas. É infinito. Se o mainstream consegue experimentar coisas novas, imagina eu que sou do submundo disposta a experimentar sem medo. RP: O Forró é infinito? GA: O Forró é infinito, até porque eu não considero Forró só um estilo musical, é um acontecimento, é uma cultura com vários estilos. RP: E, para finalizar, como você próprio define o Getúlio Abelha? GA: Sou um furacão. |