No Atelier A Fábrica, no dia 23 de fevereiro, aconteceu o primeiro evento do Coletivo Ponto Morto. Consistiu num sarau de poesia, dois concertos, uma sessão de retratos poéticos, exposição de fotografias e um DJSET. Havia poemas espalhados pela ampla arca do Atelier, a quem quisesse lê-los; pelo salão escuro, alguns potinhos de amendoim com mel e sal pousados sobre mesas caseiras, sofás espalhados por todo o lado, dando um ambiente familiar ao lugar e, finalmente, um palco iluminado com charme coroando a proa d’A Fábrica. Num primeiro momento, houve uma peça audiovisual com poesia recitada por Carolina, uma das pessoas que integra o coletivo. A poesia ficou a cargo de quem veio, e muitas pessoas participaram lendo seus próprios poemas ou aproveitando os poemas cedidos pela organização do Ponto Morto. A seguir às leituras, houve um concerto da Mel Costa, que com o corte da sua voz discreta - mas imposta - deu um belo ar à casa, enquanto cantava quase recitativamente. Seguiu-se a apresentação de João Monteiro e Inês Bártolo, marcada pela interação entre os dois; por um lado, Bártolo e sua clara doçura quase camponesa, e por outro a relativa dureza de Monteiro que, acompanhado do violão, soube dar suporte às juras de amor tresloucadas que cantarolavam com conforto. Numa mesa ao lado do palco, Joana Ferrajão, jovem poeta e dramaturga, tecia seus retratos poéticos a quem os quisesse – pintar com palavras! Próximo à entrada, uma mesa aonde estavam pousadas as fotografias de Sara, uma das integrantes do Coletivo. Formado por ocasião, mas com intenções de permanecer e se expandir, o Coletivo Ponto Morto é integrado por Carolina, Monteiro e Sara – assim, um nome só, que é como se apresentam no manifesto disponível nas redes sociais. Carolina foi chamada para fazer um DJSET n’A Fábrica, lugar aonde também trabalha, e decidiu que esta poderia ser uma oportunidade para melhor aproveitar o espaço e o tempo da casa, preenchendo as horas com outras atividades. As três pertencem aos Inkas, tradicional república de Coimbra, o que para Carolina facilitou a logística da organização: não precisa reunir quem já está reunido. Evento e Coletivo surgem ao mesmo tempo! Segundo Sara, o Coletivo é uma ideia em aberto, pronta a se adaptar e receber as ondas das oportunidades e os laços colaborativos que forem aparecendo. O que importa, diz Sara, é promover cultura e arte que venha das próprias pessoas da cidade, e não propriamente das instituições. Carolina nota que Coimbra tem sim um pendor elitista, mas há um circuito cultural underground, muitas vezes dinamizado pelas repúblicas, que não é assim tão valorizado, apesar do trabalho e do serviço que prestam à cidade. Para Carolina, iniciativas como esta podem remediar a tendente museificação das artes, que em sua perspetiva não deveriam ser retiradas de seus laços imediatos com a comunidade que as cercam – em suma, contra a múmia dos salões expositivos, uma arte viva, naturalmente integrada à vida da comunidade. Ainda que haja uma divisão provisória das funções no interior do Coletivo, todos acabam fazendo um pouco de tudo. Sara está mais próxima das artes visuais, mas também contribui com a literatura. Carolina se dedica à poesia, mas tem ideias musicais e visuais. Monteiro está responsável pelo som, mas pode quando quiser sugerir ideias literárias e afins. Afinal de contas, pertencem todas aos Inkas, e às vezes as ideias estão apenas a uma porta de distância. “É uma espécie de engrenagem”, diz Carolina. Todas têm um contato vital com o que fazem; Sara diz que na fotografia se reúnem uma série de elementos artísticos: é como pintar com luz, mas também toda boa fotografia sugere uma história. Carolina, por sua vez, vê na poesia uma forma de rápida intervenção na cultura local – afinal de contas, fazer um poema não demora tanto e não exige nenhum material senão uma mente poética. Monteiro já se vê na música há muitos anos, e faz parte da banda Paradigma, resistente desde 2011. E por que então Ponto Morto? Dizem-me suas idealizadoras que o nome pode ter dois sentidos, além daqueles possíveis a cada intérprete: por um lado, aquele estado em que na máquina não há transmissão de movimento de um ponto ao outro, como nas mudanças dos carros. Estado de passividade, em que só a gravidade determina a direção do movimento. Por outro, há a noção de potencial, de um momento a partir do qual tudo pode surgir, ou reenviado novamente à metáfora mecânica, do ponto morto se pode passar a qualquer mudança! Para Monteiro, se as pessoas não fizerem, ninguém faz. A busca de novas formas de produção e colaboração artística é uma das motivações do Coletivo que nasce não apenas para si, como também voltado a outros grupos de artista. Criar circuitos de arte, fortificar os que já existem e, acima de tudo, fazer boa arte a partir das pessoas ao redor. É cultura que se fortifica através da união e da partilha. Para o futuro, o Coletivo Ponto Morto não pretende ficar apenas no presencial. Com outras colaborações a se esboçarem no horizonte, o Coletivo pretende também lançar conteúdo digital, poemas recitados com suporte audiovisual, a quem não apeteça ouvir uma canção ou peça musical, mas apenas ouvir um poema. Assim, no digital, poderiam unir suas paixões: poesia, música e imagem numa só obra. Engatemos a mudança, mesmo que contra a gravidade das subidas coimbrãs, e continuemos atentos ao que farão no futuro! Decerto que não ficarão pelo ponto morto! Fotografias gentilmente cedidas pelo Coletivo Ponto Morto Nas instalações do Grêmio Operário, no dia 25 de fevereiro do corrente ano, houve uma conversa a encerrar a primeira exposição do Coletivo Gambozino na cidade de Coimbra, Portugal. Intitulada Intelecto Agente, o evento durou 15 dias, reunindo exposição, performance, conversas com artistas e até mesmo concertos, que tiveram lugar no Pinga Amor. Babu Hamilton, artista angolano residente em Coimbra, abriu a conversa expondo alguns detalhes sobre um dos núcleos temáticos de seus trabalhos. Através de uma diversidade de técnicas, em que se destacam a serigrafia e a colagem, Babu Hamilton procura expressar sobre memória e identidade, particularmente no que elas têm de relação com a língua. Seus trabalhos redescobrem a história de línguas subjugadas pelo avanço colonial em África. É pelo valor plástico dos símbolos adinkra, espécie de ideogramas originários de Gana, que Babu procura recontar culturas apagadas pela língua dominante, recuperando nas inscrições ancestrais o sinal perene, a memória externa de uma outra história do mundo. Esses símbolos são sobrepostos, reapropriados, impressos sobre imagens que denotam antigas narrações; numa de suas peças, a figura de uma mulher etíope em trajes tradicionais se sobrepõe aos traços tipológicos do adinkra. Em outra peça, Babu exprime a não-linearidade e a confusão histórica vindas dos encontros entre povos pela exposição de camadas caóticas de cor polvilhadas de símbolos carimbados. A linguagem como legado, depositária de memória; e a memória, no lembrar-se, como depositária de identidade e retificação histórica. Rita Gaspar Vieira, artista e docente, prossegue a conversa. Para ela, que crê o olhar como condicionado pela posição em que nos encontramos no mundo, a arte é também uma forma de redescobrir a novidade dum cotidiano que, embotado pelo hábito, pode passar ao lado. Uma das temáticas das obras que nos mostra é a transposição de texturas e dimensões de um lugar para a exposição vertical da tela e o espaço da galeria; para ela, o lugar, suas texturas, cheiros e cores, imprimem-se na memória, como as ranhuras do chão de uma fábrica se imprimem numa de suas obras: uma gigantesca tela composta de algodão encharcado e tingido com grafite que é verticalizada quando seca, tornando-se como um mapa impresso dos acidentes do chão aonde secou. O tecido, o papel, enfim, o suporte material torna-se superfície com o toque imprimido de um lugar. A seguir, se deu uma troca entre Rita e Babu, em que, a convite de quem vos escreve, falaram um pouco sobre a sua relação simbólica com a tela, o texto, o tecido e a marca, impressão, o tingimento. Rita mencionou como, tendo se iniciado na arte através do desenho representacional, sentiu sua transição estética para longe da representação como um aproximar-se das coisas mesmas. Em suas palavras, as suas obras têm a dimensão daquilo que representam; ou melhor, geralmente são o que representam. O tema das possibilidades do que pode ser superfície material da memória também interessa a Babu, para quem tudo começa no papel, aonde se gravam as memórias, as experiências, o detalhe da história pessoal. Finda a conversa, tivemos a apresentação de quatro vídeos. Nos três primeiros, a artista Lilian Walker explora o registro em vídeo das oscilações de um corpo humano e atuante, coberto de materiais pulverizados. No primeiro e segundo vídeo, contra o panorama da cidade de Brasília, vai aos poucos emergindo um abdómen soterrado de terra muito vermelha, ofegante e sôfrego. Ao fundo, um som de britadeira. Já no segundo, um colo coberto de materiais pulverizados multicolor sublinha o movimento orgânico da fala, que no vídeo fica quase abstraída, reduzida a sussurros. O terceiro vídeo, do artista Chancko Karann, é o registro em vídeo – vídeo com distorções esféricas, em preto e branco – de um trajeto feito comumente pelo artista, que possui limitações de mobilidade. Dois dias depois, já desmontada a exposição, encontro-me com Pedro Vaz e Emanuela Boccia para conversar sobre a exposição. Ainda que a exposição tenha sido composta por obras dos mais variados materiais e meios – instalação, tecelagem, videoarte, serigrafia, pintura – Pedro e Emanuela, responsáveis pela curadoria e organização, pensam que há uma unidade através da diversidade de diálogos que uma exposição coletiva como esta traz; Emanuela, além disso, também participou com uma obra sua. Ambos conhecem uma série de artistas cuja atividade ainda não se tinha visto em Coimbra, havendo até mesmo uma artista para quem esta foi sua primeira exposição. Há também artistas internacionais, que optaram pela videoarte na sua participação pela facilidade de sua reprodução em território português. Sendo um projeto com pouco orçamento, trazer estes artistas ou suas obras físicas seria difícil. A exposição foi também motivada por uma necessidade de procura de espaços de exposição para artistas incipientes. Vista a dificuldade desta primeira inserção no circuito expositivo “oficial”, Pedro e Emanuela pensam que é preciso procurar espaços, “fazer aonde dá”, como diz Pedro, mesmo que isso signifique montar uma exposição num espaço que, a princípio, não foi construído para esta finalidade, como é o Grêmio Operário. Há a menção de uma grande dificuldade de aceder a espaços tradicionais, tendo em conta que são jovens artistas e muitas vezes os processos de seleção das salas de exposição tradicionais têm dificuldade de reconhecer e apoiar novos projetos. Pedro Vaz chega a aludir a um problema de autoestima dos artistas, ou mesmo ao medo envolvido em se expor enquanto tal. A arte vulnerabiliza a artista, mas ainda assim todo artista tem a preocupação de ter seu trabalho exposto – visto, colocado diante do público, seja ele qual for. A forma da exposição coletiva fomenta a ajuda mútua entre artistas, que se fortificam nessa relação e têm a oportunidade de se deixarem influenciar e impactar pelas obras de seus contemporâneos. O desafio não passa apenas por encontrar artistas e unificá-los em torno de uma só exposição, como também pensar a montagem de um espaço que não foi feito para expor. Emanuela sublinha como a própria montagem em tais condições é um processo criativo, em que se trabalha com o que se pode e o que se tem. A exposição conta com artistas mais experientes, mas a maioria ainda lida com o problema de se fazer expor. Todo este esforço está calcado, como transpira na conversa, num tremendo amor à cultura e à arte, na consciência de seu poder transformativo, suscitador de questionamentos e trocas – tanto entre o público quanto entre artistas. Gambozino, segundo Emanuela, é uma criatura imaginária que os adultos pediam para que as crianças procurassem. Caçar gambozinos, esta atividade de procurar o que não existe, é, para Pedro Vaz, uma bela metáfora do fazer da curadoria e da arte – “é ver o que não está” e agir para que passe a estar, como diz. Emanuela insiste na noção de que a arte deve ocupar espaços improváveis, estabelecer laços com a comunidade que a rodeia, instigar a mágica e a fantasia que são seus componentes naqueles que a apreciam. Ao fim da conversa, saio com a impressão de que o Coletivo Gambozino desenha no panorama coimbrão um trajeto a contrapelo, em que os próprios artistas, organizados, têm de cavar seu espaço nos espaços que conseguirem ocupar, por indiferença ou ignorância das instituições – para quem sabe lá finalmente encontrar Gambozino, essa ausência tão presente. Que seja aberta a caça aos gambozinos, que é talvez o que nos falta!
Fotografias: Guilherme Fonseca |