Pianista carioca cruza as fronteiras do óbvio com estilo urban jazz e estética afrofuturista. Texto: Keissy Carvelli Nascido e criado no subúrbio do Rio de Janeiro, em Madureira, o músico Jonathan Ferr cruzou as fronteiras do óbvio e não só deu novo frescor à música brasileira como também mostrou ser possível transar jazz, hip hop, música eletrônica, moda e cinema. Desde 2019, com a chegada ao mundo do seu primeiro álbum, Trilogia do amor, Jonathan Ferr vem mostrando ao mundo a sua capacidade de reinventar as sonoridades, de inspirar espiritualidades e de conquistar um público amplo, aficionado ou não pelo jazz. Em Liberdade (2023), álbum recém-lançado, o pianista deu mais um passo na reinvenção do jazz. A partir de beats sampleados do seu segundo álbum, Cura (2021), criou ritmos dançantes junto de artistas como Kaê Guajajara, Luedji Luna, Rashid, Tuyo e mostrou, mais uma vez, seu poder ilimitado para a criação. Interessado na constante inovação, o músico carioca subiu ao palco do Salão Brazil na última quinta-feira (3) para uma apresentação em piano solo do álbum Cura (2021). Antes do concerto, Jonathan Feer conversou com a Rádio Pessoas sobre o seu urban jazz afrofuturista, sobre a relação entre música e espiritualidade e deu spoiler da sua próxima curiosíssima invenção: um disco só com releituras de canções da banda Charlie Brown Jr! Rádio Pessoas: Ao observar a sua discografia, percebo uma certa transformação do primeiro disco, o Trilogia do Amor (2019), cuja sonoridade jazzística é muito particular, passando por Cura (2021), até chegar no disco mais recente, Liberdade (2013), em que há uma série de parcerias com nomes do hip hop como o Rashid, por exemplo. Como se dá esse percurso do primeiro disco para este atual? Jonathan Ferr: Essa discografia fala muito de fotografias minhas, do meu mood. Eu começo realmente buscando uma coisa mais jazzística, mas um jazz que fosse diferente. Eu sou um músico que venho de Madureira, do subúrbio do Rio, com uma história muito diferente da história de outros músicos que estavam no Leblon e em Copacabana tendo acesso a muitas outras coisas que eu não tinha. Então, eu resolvi assumir esse lugar e essa realidade que me contemplava. Fui rodeado pelo lugar que é o berço do samba, onde tem o famoso Baile Charme de Madureira de black music, um lugar que tem o jongo da Serrinha. Eu quis trazer todas essas referências, algumas mais óbvias outras menos, e afirmar o meu som como algo diferente do que estava posto, porque todos os eventos de jazz que eu ia tinham os mesmos temas tocados do mesmo modo e eu intuía que havia novos caminhos para serem percorridos e eu queria percorrer esses caminhos. Eu quis, então, afirmar uma nova forma de pensar o jazz que foi o Urban Jazz, e então vem o Trilogia do Amor. Neste primeiro álbum, de alguma maneira, já tem um link com o álbum Liberdade. Já existe um caminho iniciado ali. Em 2020, com a pandemia, eu comecei a compor algumas canções em piano solo para me curar e me expressar mesmo. Logo em seguida, eu assino contrato com a gravadora Som Livre e eles perguntam se eu tenho algum projeto de disco e eu falo dessas composições em piano solo, que eu pensava ser algo a ser feito após dez anos de carreira apenas. E de repente saiu o álbum Cura, que foi e tem sido um grande sucesso. E ali está um Jonathan mais intimista, mas é o mesmo Jonathan de Trilogia do Amor e o mesmo Jonathan que está se mostrando em Liberdade, até porque em Liberdade eu sampleei o disco Cura, fiz alguns beats e chamei alguns artistas para poderem rimar em cima dessas batidas. Então, de alguma maneira está tudo interligado. RP: E como você percebe as diferenças entre os álbuns Cura e Liberdade? JF: Cura é o álbum Lunar, é o álbum da noite, é um álbum que evoca um mergulho nos nossos mistérios, na noite, no sonhar, intuir, nos mistérios da noite, das estrelas. Enquanto em Liberdade evoco o amanhecer que traz o sol, depois de ter me curado eu me emancipo e me liberto. Esses discos eu considero discos meio gêmeos, embora estilisticamente eles tenham uma caminhada e uma busca diferente. RP: Há uma relação muito próxima também dos discos com uma busca pela espiritualidade, pela liberdade. Como você vê isso? JF: Eu faço meus discos sempre pensando a partir dos meus processos espirituais. Cura foi assim, Trilogia do Amor também foi um processo de pensar a energia cósmica que todo mundo tem. Também o disco Liberdade foi pensado a partir da ideia de emancipação, de como eu emancipo o meu ser e o meu espírito. Tem uma frase do Nietzsche que eu gosto muito que diz “nunca é alto o preço a se pagar pelo privilégio de pertencer a si mesmo”, e é nisso que eu tenho acreditado, porque eu acredito que quanto mais emancipado nós estivermos, mais iluminado nós estivermos, mais poderemos iluminar outras pessoas e fazer um processo de transformação desse mundo. RP: Falando do Cura, é curioso que você abre o disco com uma versão de “Sino da Igrejinha”, uma canção da Umbanda que fecha o disco Canta, canta, minha gente de Martinho da Vila. Também tem outro caso curioso na canção “Sonhos”, do disco Trilogia do amor, onde há um trecho de um discurso do Martin Luther King. Como surgem essas duas referências tão diretas? JF: O “Sino da Igrejinha” foi muito interessante porque foi uma música que sempre me tocou quando eu ia para os sambas, é uma música que habitava meu imagético. Eu fui uma pessoa criada no ambiente evangélico e depois rompi com a Igreja, resolvi seguir outros caminhos, e ali no meio da pandemia eu me encontrei ancestralmente através dos cultos de matriz africana, embora não frequentando, mas fui conhecendo muita gente e fui me apaixonando pelas figuras que representam os Orixás, principalmente a figura do Exu, que traz um aspecto muito humano e de muito poder, de abertura de caminhos. Então, quando eu entendi o que era esse Orixá, o que era esse “tranca rua” que fala na música, esse arquétipo de Exu e a força que ele tem eu resolvi fazer um arranjo para essa música. Comecei a buscar outros pianistas para ter referência e não tinha ninguém que tivesse feito isso, foi aí que eu percebi que eu tinha sido o primeiro pianista a gravar essa música nesse estilo, então resolvi ousar e colocá-la para abrir o disco e abrir os caminhos evocando os espíritos ancestrais. Então, embora eu soubesse da gravação do Martinho da Vila, nesse caso, não foi uma referência direta, embora a versão de Martinho seja uma das mais maravilhosas e uma das mais conhecidas. E é curioso porque o piano tem muito esse lugar da erudição, do signo europeu, então trazer o “Sino da igrejinha” para dentro do meu álbum também foi um lugar de afirmação enquanto pianista do subúrbio onde tem vários terreiros, onde tem o samba, e aí nesse caso eu acho que faz um link com o Martinho da Vila, que é de Vila Isabel, subúrbio também, e evoca o lugar de onde eu vim, que é Madureira. Já a música “Sonhos”, com o trecho do Martin Luther King, tem outra história. Eu tinha lido um livro que falava do Martin Luther King fora do mito, tratava do sonho de um bem maior, que era essa emancipação do povo preto. Então eu compus essa música inspirada nessa história e aí para mim fez todo sentido inserir um trecho do próprio discurso dele. RP: Você também tem uma relação muito próxima com o cinema, você dirige, por exemplo, o filme da música “Meu Sol”, do seu novo disco. Como começou essa aproximação entre música e cinema? JF: Eu quando tinha uns 15, 16, 17 anos tive um momento muito rico da minha vida em termos de incorporação de conhecimento e eu sempre gostei muito do ambiente do cinema. Então, houve uma oportunidade de estudar com um grande cineasta já falecido, o Alberto Salvá, com quem estudei roteiro e direção durante um ano. Em 2018, já com o disco Trilogia do Amor pronto, quis lançar algo que fosse um híbrido entre o curta metragem e o videoclipe, e aí me aventurei em fazer minha primeira direção a partir de um roteiro meu e de outra roteirista. Surgiu, então, “A Jornada”, feito com recursos mínimos e foi incrível. Fui incentivado a inscrever esse curta-metragem nos festivais de cinema e ele foi não só aceito como ganhamos prêmio de melhor trilha sonora, que é a trilha sonora do disco, e o prêmio de melhor figurino. Então foi ali que percebi que existia um grande potencial a ser explorado a partir da ideia afrofuturista que eu estava explorando com a inserção de corpos pretos na tela sendo mostrados de uma outra maneira. E a partir disso comecei a desenhar os projetos, comecei a dirigir outros filmes de curta. Eu brinco que a direção é uma cachaça (risos). Quanto eu estou produzindo música, eu me sinto um arquiteto do som, e quando eu estou dirigindo, eu me sinto um arquiteto da imagem e são duas coisas que se complementam muito. Eu gosto muito de moda também, então acaba que eu acabo fico passeando por essas coisas. Mas é claro, eu sou um diretor a partir do pianista, isto é, da música eu chego no objeto do cinema e aí eu tento mesclar esses dois caminhos e fazer mais coisas acontecerem. Agora tive essa oportunidade maravilhosa do filme da canção “Meu Sol” com a participação do ator Ailton Graça, que aceitou prontamente o meu convite. O filme já está quase com 400 mil visualizações no YouTube. Eu fico muito feliz. RP: Você disse que gosta muito de moda e isso é também uma particularidade da sua personalidade artística. Como é essa relação do músico com a moda? JF: Eu sempre gostei muito de moda, da imagem, de direção de arte, de figurino e aí quando comecei a fazer meu trabalho oficialmente com a música eu entendi que a minha comunicação tinha que ser visual também, não só musical. Ao longo do tempo fui entendendo que a moda para mim era um lugar de expressão assim como me expresso com a música e com o cinema. Eu comecei a ter acesso a outros estilistas, alguns estilistas também começaram a querer me vestir e aí a partir disso desfilei no São Paulo Fashion Week, fiz campanha para a Dior, então existe toda uma trajetória que aconteceu a partir desse lugar da moda e é um caminho sem volta. É curioso isso acontecer com um artista de jazz, já que todo mundo pensa que o artista vai subir no palco todo de preto e preocupado apenas com as notas que deve tocar. Mas eu estou mais interessado em conectar do que apenas em entreter e trago a moda para comunicar, para trazer a atenção para aquilo que quero falar. Eu não quero ser conhecido como o pianista que dá mais notas por segundo, teve uma época que essa era a moda. Eu quero que pessoas ouçam minha música e se conectem com elas. O pianista Herbie Hancock, de quem gosto muito, fala que a música é um pingo no oceano, imagina um dos maiores pianistas do mundo falando que a música é um pingo no oceano! Ou seja, se não houver a conexão, se as pessoas não se sentirem transformadas quando te ouvem, sua música não valeu quase nada. Então, eu fico buscando esse lugar. RP: E por falar em influências, quais as tuas principais referências musicais? Sempre foi o Jazz?
JF: O jazz entra na minha vida com 18 anos, junto com o hip hop curiosamente, e eu acho que mudou a minha escuta e a minha trajetória. Junto do jazz fui apresentado ao MV Bill e aos Racionais MC’s, o que me fez descobrir o ser político que eu sou, o homem negro que sou e me fez pensar como é caminhar a partir desse corpo no mundo. Todos esses processos me inspiraram muito. Hoje eu sou uma pessoa que escuta muito jazz novo, jazz antigo, hip hop do Brasil e do mundo, ouço bastante coisa nova, também ouço música erudita. Eu gosto de tudo, tudo que me toca eu me interesso. Deixo minha mente muito livre para ser provocada e conectada por tudo que acho interessante. RP: Como é a sua relação com a necessidade de criar coisas novas, de inventar coisas novas tendo como background a grandiosa não só do Jazz como também da história da MPB, sempre uma ponta-de-lança da música mundial? JF: Eu tenho muito respeito por quem veio antes de mim e abriu caminho e trouxe novas possibilidades no campo da música, sendo ponta de lança mesmo no mundo. Aqui na Europa, por onde eu passo e falo que sou brasileiro as pessoas demonstram conhecer muito da nossa música e fico impressionado. Então, enquanto pianista preto que veio do subúrbio, eu tenho muita responsabilidade com o que eu tenho para falar. Eu penso na música como um lugar que vai do jazz de John Coltrane até Racionais Mc’s. São coisas que parecem dois mundos, mas são caminhos que conversam entre si, e eu fico buscando esse lugar dos limites. Estou sempre buscando o novo, o que é o fresco, o que posso trazer de frescor. Vou lançar, por exemplo, um EP só com músicas do Charlie Brown Jr, arranjadas por mim e gravadas junto com a Orquestra de Ouro Preto. É um caminho que vai ser bem fora da curva. Eu faço música para mim primeiro, para eu ouvir, para eu me conectar. Penso que amor e conhecimento só fazem sentido quando é compartilhado, e é assim que eu me relaciono com a minha música, com as cosias que eu escrevo. Meu propósito é compartilhar. RP: Então em breve temos disco novo? JF: Primeiro será lançada a música “Saudades”, uma versão em homenagem ao meu pai, que faleceu inesperadamente assim que eu cheguei em Lisboa para essa turnê. Foi difícil esse processo, de altos e baixos, e eu tenho dedicado essa música para ele nos shows que tenho feito. Na sequência, em setembro, deve sair o disco com essas versões que, a princípio vai se chamar Lar. Será um Charlie Brown Jr por Jonathan Ferr. RP: E para finalizar: como você definiria, em uma única palavra, o Jonathan artista? JF: Eu diria inovador, é assim que eu defino as coisas que eu faço. Tento trazer a inovação, aquilo que ninguém nunca fez, ninguém nunca ouviu, nem mesmo eu, vou buscar esse lugar de inovação sempre, é o caminho que venho buscando.
0 Comentários
Deixe uma resposta. |