A maioria das flores são andróginas. Têm pistilo e estame, e são capazes de dar e receber ao mesmo tempo. Diz a ciência que as pétalas têm tantas cores, e as formas florais são tão diversas quanto os seres que levam o pólen de uma à boca de outra flor. A corola é um convite colorido que a planta lança ao ar, e nos seus desenhos extravagantes, suas variações caprichosas, na delicadeza dos traços, quase se adivinha numa flor a natureza livre, a desenhar como se escrevesse um poema. Não é à toa que a flor e a poesia estiveram tão próximas na boca do povo. O projeto que a Rádio Pessoas frequenta hoje é a Revista Baleia com seus versos vira-latas, que teve primeiro sua germinação como ideia e realidade em saraus de poesia na floricultura Arte & Flor. Como tudo na vida, o embrião dos projetos é gente germinando junto. Através de encontros à volta da poesia e entre flores, se formou o grupo que daria início à revista. O interesse mútuo em poesia preenchia os encontros, e as pessoas envolvidas começaram a querer materializar esses momentos - dar papel, e por isso longevidade à ideia. Aconteceu um espaço receptivo não apenas à declamação, como também à exposição de poesia autoral. Adolfo Caboclo conta que a poesia era lida em roda, sem a autoridade do microfone, num ambiente de partilha. Raoni apareceu com coisas escritas - mas como disse o compositor Sérgio Sampaio, um livro de poesia na gaveta não adianta nada. Conforme os saraus multiplicavam-se, surgia cada vez mais a vontade de não apenas ler, como também fazer poesia. Diz-nos Adolfo que um dia, na Tasca Bahia, quando o assunto virou poesia, houve a primeira conversa explícita sobre a produção da revista. Estavam Anne, Nayara, Raoni, Adolfo, André, Tiago, Jefferson. Um projeto entre amigos. E assim foi também seu plano: Joana Gonçalves, que é designer, faria a paginação; Neli Beloti, boa organizadora, planejaria a captação de recursos. Poesia era o que não faltava para ser imprimida, e como o momento do sarau também se tinha tornado um ponto de encontro para gente amiga, logo surgiu o suporte e a vontade necessária para a revista finalmente acontecer. Anne conta que a Baleia se tornou uma família. Não se trata apenas de uma revista, mas de um projeto que surge do solo do entre-acolhimento, diz-nos ela. A maioria das pessoas envolvidas são estudantes ou imigrantes do Brasil, longe de suas famílias e seu país em momentos incertos e turbulentos da sua política nacional, como lembra André. Ele afirma que a revista foi uma realização do alívio sentido pela derrota de Bolsonaro. Anne reafirma isto, falando que a revista é também um grito, um manifesto de revolta. A poesia se põe aqui como este objeto comum, como uma fogueira cercada de gente que se relaciona através da sua luz. Entrecruzam-se as ansiedades políticas e sociais, o desejo de acolhimento e pertencimento, os versos vira-latas, e não temos apenas uma revista, mas um organismo. E um organismo que vem crescendo. O primeiro grupo da revista acredita que ela sobreviverá ao seu envolvimento. Como diz Anne, “a Baleia já não é nossa”. Espalhou-se pelo mundo, já frequentou mãos e bocas amigas em muitos países. Contam que há até quem já tenha ouvido falar no Brasil e, planejando vir a Portugal, queira vir participando. Para Adolfo, isso é importante, deixar projetos, fazer acontecer na cidade. Nisto inclui-se trazer discussões importantes através da revista, como a decolonialidade e o feminismo. Todas as capas da revista, que já vai na sua terceira edição, foram desenhadas por mulheres. A última lançada foi uma edição comemorativa do Dia das Mulheres, e foi preenchida de poesia na sequência de uma chamada aberta a todas elas. Segundo Adolfo, a chamada teve mais aderência que o esperado, e tiveram mesmo de fazer curadoria para saber quais poemas seriam incluídos na edição. “Faltou até papel”, diz-nos Adolfo. Adolfo conta que o nome da revista é uma referência à pobre cadela do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos. A ideia é que a Baleia está para o Brasil como a Cabra está para Coimbra, Portugal. As cabras são animais de pouco, conhecidas por serem capazes de se alimentar das mais duras raízes. Têm quatro estômagos para ir contra resistência do mato duro de que têm de se nutrir. Já a Baleia, que tem apenas um estômago, é também capaz de comer o mundo, num gesto inaugurado pelo nosso modernismo de pátria vira-lata. Que tenhamos vontade e disposição para continuar a se orgulhar desse viralatismo. Com seu sotaque brasileiro, a última flor do Lácio permanece criativa na cidade de Coimbra, e tem pistilo e estame para continuar sua inflorescência. Leiamos poesia! . . . Autor: Pedro Ribeiro Fotos gentilmente cedidas pela Revista Baleia Tudo que acontece tem lugar, tempo e gente envolvida. A pandemia veio deixar marcas ainda invisíveis, mas que começam a se expressar nos detalhes. A Rose Gate Sessions começou na volta à normalidade do pós-pandemia. A vida noturna, sufocada pelo rígido lockdown, não acontecia – e se acontecia, era clandestinamente. Uma outra vida noturna apareceu na cidade; as pessoas foram deslocadas de seus lugares prediletos, forçadas a frequentar outros sítios e pessoas, ou a encontrar maneiras de manter algum contato humano. Houve muitos lugares que não sobreviveram ao inverno pandêmico. Alguns voltaram com novo fôlego, transformados, como um riacho que entra na rota com um novo rio de gente.
All that happens happens in place and moment, and there's always people involved. The pandemic has left a seemingly invisible scar, but one that begins to express itself in the details. The Rose Gate Session began in the post-pandemic circumstance, the coming back of “normality”. Coimbra’s nightlife suffocated under the rigid lockdown; it simply didn’t happen at that time. If it happened, it was clandestine. A different nightlife emerged from this experience; people were displaced from their habitual preferences, forced to change their routes, to know different places e people, or at least find new ways to keep some human contact. Many places couldn’t survive the pandemic winter. Some of them came back with a renewed breath, transformed, just like a stream that would enter in the same route as a new river of people. A jam foi idealizada e iniciada por Raul, conhecido como Rose Gate, com ajuda de Miguel Matos, que emprestava instrumentos e participava na montagem do evento. Inicialmente contou com o apoio de amigos e gente conhecida dos organizadores. A proposta era fazer música improvisada, e também ter uma renda com a produção de eventos artísticos e musicais. Raul, infelizmente, veio a falecer. Numa das últimas conversas que teve com Miguel, disse-lhe que iria para Alemanha e gostava que o amigo desse continuidade à Rose Gate Sessions. À altura, Miguel negou – disse-me que é um rapaz tímido, e não tem muito jeito para ficar a falar ao microfone. Com o falecimento do amigo, decidiu agarrar o evento, como forma de homenagem à amizade de Raul. Em Coimbra, há um evento que existe pela lealdade ao desejo de um amigo que se foi. The jam was an idea of Raul, also known as Rose Gate, with a little help from a friend named Miguel Matos, who helped lending instruments and setting up the stage. In its beginnings, it had the support of closer friends, people known to the organizers. The whole purpose was to make improvised music while being able to get some money working with the production of such artistic and musical events. Raul, unfortunately, has passed away. In one of their last conversations, Raul asked Miguel if he didn’t want to continue the project while he was out working in Germany. At that time, Miguel denied the invitation – he said he is a shy man, and has no skill talking in public. When his friend passed away, Miguel decided to keep the project on as to pay homage to his dear friend. In Coimbra, there is an event that exists through the loyalty of a man to the desire of his deceased friend. A pandemia mudou o panorama da cidade. Em Coimbra, cada recanto vira uma espécie de família por frequentação; as pessoas fazem seus próprios mapas da cidade pelos lugares que escolhem passar seu tempo. Nas quartas-feiras, o Liquidâmbar se tornou um recanto para muitos estudantes internacionais de Coimbra. Por alguma razão, as jams se tornaram passagem obrigatória da vida noturna internacional da cidade. A casa enche-se de juventude e entusiasmo, ocupam-se todas as mesas da sua parte exterior, uma varanda cercada numa das suas extremidades por grandes folhas de costela de Adão. Nas sacadas que dão pras ruas, as pessoas espremem-se a fumar e conversar enquanto encaram o largo da Praça da República. Nas conversas, ouve-se principalmente o inglês e o português numa variedade de sotaques. A frequência internacional é tal que as comunicações de Miguel, chamando ao palco os que se inscreveram para tocar, são feitas em inglês de sotaque português. The pandemic changed the city’s landscape. In Coimbra, each corner turns into a family by attendance as people make their own map of the city by the places and people they choose to spend their time with. The Wednesdays of Liquidâmbar have turned into a corner for many international students. For some reason, these jams were transformed into a mandatory passing place for Coimbra’s international nightlife. The house gets full of youth and enthusiasm, all the tables are busy in its outer part, a kind of a balcony surrounded in one of its extremities by big monstera leaves. At the balcony facing the street, people squeeze themselves smoking a cigarette while looking at Praça da República. Overhearing conversations, you can expect mostly English and Portuguese in a variety of accents. The international attendance is such that Miguel’s words on the microfone are said in a Portuguese English accent. Jorge Gouveia, dono do espaço, diz que sempre procurou criar abertura, oportunidades para que eventos como este acontecessem. Para ele, a larga adesão estudantil internacional dá lugar a um grande espírito de fraternidade, que é também saber passar boas horas juntos, com música a nos cercar. Nunca cairá em ilusões nacionalistas quem quiser criar uma nova utopia, “a nação dos vivos”, diz ao citar Mia Couto. Nestes ambientes, as diferenças nacionais esbatem-se e aparece a oportunidade de se compreender uma comunidade de diferenças – um mundo em que as diferenças não sejam razão de divisão e exclusão. Jorge Gouveia, the owner of the place, says that he has always tried to create openness and opportunity for events like this. For him, the vast attendance of international students can mean there is an opportunity for fraternity; people have a good time together, with music surrounding everything. He says: no one who has ever tried to create a new utopia will fall for nationalist illusions, for he will prize most the “nation of the living”, quoting Mia Couto. In this type of environment, national differences get outshined and there is opportunity of understanding in a community of differences – pointing to a world in which differences are not a reason for complete division and exclusion. Mesmo as músicas revelam isso. Miguel lamenta que haja menos jam e mais covers, mas pensa que há muito de positivo na transformação. Na lista encontramos muitos sucessos antigos do rock’n’roll, que muitas pessoas conhecem e, conhecendo, podem cantar juntas e se identificar numa coisa só. Como o público é grande, surge também a possibilidade de artistas da cidade virem mostrar o seu trabalho, como nota Miguel, e esse é o aspeto que ele diz apreciar muito na nova face que a Rose Gate Sessions tomou desde sua origem no pós-pandemia. The playlist itself has a clue about this. Miguel laments the fact that there’s not so much improvisation anymore, as people play mostly songs, but he also sees positive sides to this transformation. We can hear a lot of rock’n’roll tunes, successes that all people know by heart and can sing together. The public has become big, so there is the opportunity for new artists to show their craft, as Miguel points out – this is an aspect of it all that he is specially proud of in this turning point Rose Gate Sessions had. Não são apenas as diferenças nacionais que convergem no Liquidâmbar nestas quartas-feiras. Beatriz Costa, que também cantou na jam, diz-nos que vê o Liquidâmbar como um espaço que procura ser para a partilha, “sem olhar a identidade de género", mas que mesmo em espaços como este, as forças patriarcais da sociedade mais geral acabam por às vezes prevalecer. Ela considera que há um esforço no combate ao machismo e à lgbtqia+fobia em tais lugares, mas ainda sente falta da participação de mulheres no evento. Por outro lado, ela conta-nos que sempre que vai à jam leva algo de novo e interessante para casa – nela já conheceu pessoas, outros panoramas, outras perspetivas políticas. Beatriz pensa que este evento é um “espaço multiconvergente”, cruzamento de muitas diferenças e uma oportunidade para a partilha. Not only national differences converge at Liquidambar on these Wednesdays. Beatriz Costa, who sang a moment before speaking with us, says Liquidambar is a space taking special care of values such as sharing differences and anti prejudice. But even in such places, sometimes the patriarchal forces have their way and prevail. She recognizes there is an effort in fighting against male chauvinism and lgbtqia+phoby in spaces like these, but she still misses more participation by women. On the other hand, she tells us that she brings home something new everytime she comes to the jam – she has met new perspectives, ideas and people here. Beatriz thinks that this event is a “multiconverging space”, a crossing of many differences and, who knows, an opportunity for sharing. Partilha também de referências e modos de viver a música, diz Eli MacFerry, que também é músico na cidade de Coimbra. Ele conta que, sempre que vem à jam, sabe que ouvirá música boa. É um bom espaço para gente mais jovem tocar, amadora ou não. Eli mantém seus ouvidos abertos “para absorver coisas que vão servir” pro seu próprio processo criativo. Para ele, a Rose Gate Sessions é um lugar por onde toda gente que passasse por Coimbra deveria aparecer. É opinião semelhante a de Ricardo Reis, para quem a Rose Gate é palco pra muitos talentos de Coimbra, e um lugar pra se ouvir bom rock’n’roll. Segundo Ricardo não se trata apenas de sair para consumir alguma coisa, mas de se juntar ao pessoal, fazer uma comunidade à volta da música que está a ser tocada. Ele diz que conheceu muitas pessoas, e é isso que procura. Jack Reinhardt, que tocou na jam uma enérgica versão de Start Wearing Purple, dos Gogol Bordello, conta que sente uma comunhão com o pessoal estrangeiro, e aprecia a multiculturalidade da noite. Sente o Liquidambar como um lugar inclusivo, tolerante ao diferente. É um clima sem inibição e julgamentos, diz ele. Sente-a como uma segunda casa. Sharing which is also of musical references and ways of living it, as said by Eli MacFerry, who is a musician in Coimbra. He tells us that, every time he comes to the jam, he comes knowing he will be listening to good music. It is a good place for young people to gather and play, amateur or not. He says he is with open ears here, absorbing things that will later figure in his own creative process. For him, the Rose Gate Sessions is a place everybody passing by Coimbra should visit. Ricardo Reis thinks similarly; he notes that here you can find a stage for new talent in the city, and also a good place to listen to rock’n’roll. According to his view, it is not all about consuming, drinking and such; it is more about getting together surrounded by music. He has met many people here, and that’s what he is looking for. Pedro, also known as Jack Reinhardt, played an energic version of Gogol Bordello’s Start Wearing Purple. He tells us that he feels in this event a communion with the international part of the city, as he appreciates its multiculturality. He feels that Liquidambar is an inclusive place, tolerant to what is different. There is a climate of inhibition and nonjudgment. He says he feels here as his second home. De uma relação de amizade no pós-pandemia surge um evento que vem preenchido com beleza as quartas-feiras em que ocorre. O Liquidâmbar fica muito vivaz, e ouve-se música e conversa por todos os seus cômodos. O cruzamento das diferenças, mesmo sua celebração, a abertura ao outro independente de gênero, nacionalidade a afins foram assuntos que surgiram nesta frequência da Rádio Pessoas; temas do tempo, particularizados num evento – na Rosegate Sessions, que certamente continuará criando assunto em diversas línguas nas quartas-feiras do Liquidâmbar. From a friendship in the midst of the post-pandemic world emerges this event, which has been fulfilling its Wednesdays with beauty. Liquidambar becomes lively, and you can hear music in every of its rooms. The crossing of differences, its celebration, an openness to the other in independence of gender, nationality and the like are all topics raised in this attendance of Rádio Pessoas; themes of our own time, particularized in an individual event – Rosegate Sessions, a project that certainly will be creating its own topics, dealt with in different languages, every Wednesday at Liquidâmbar. . . . Fotógrafo / Photographer : Guilherme da Fonseca |