A rápida ascensão do bolsonarismo não deixou suas marcas apenas no Brasil. A comunidade brasileira no exterior também reagiu ao processo que culminou na tomada de posse de Jair Messias Bolsonaro como o trigésimo oitavo presidente da República Federativa do Brasil, no dia 1º de janeiro de 2019. Portugal tem assistido ao grande crescimento da imigração brasileira ao longo dos anos da última década. Segundo dados de 2022, somam-se ao todo 252 mil brasileiros legalizados no país, com o distrito de Coimbra tendo a maior concentração relativa da nacionalidade. Como é de se esperar, os conflitos políticos do seu país de origem inevitavelmente provocam a organização internacional de muitos brasileiros que, ainda que distantes, têm ainda próximas as preocupações com os rumos da nação que mais tem representantes dentre os estrangeiros que decidiram fazer de Portugal seu novo lugar. Aquando da eleição de Bolsonaro, muitos imigrantes brasileiros sentiram a necessidade de se organizarem para denunciar e resistir como pudessem a um governo de claros pendores autoritários e regressivos. Um desses coletivos, o Vozes no Mundo, é o tema do Frequenta desta semana. Surgido em dezembro de 2018, pouco depois da derrota de Haddad no segundo turno das presidenciais brasileiras, o Vozes no Mundo emerge como uma maneira de formalizar e dar nome a aglutinações espontâneas que já vinham se ensaiando desde os primeiros sinais de que o bolsonarismo viria para fincar os pés no cenário político brasileiro. Neli Beloti, uma das fundadoras, conta-nos que o principal objetivo do coletivo era denunciar a regressão antidemocrática que a eleição de Bolsonaro representou para o Brasil. “Foi uma tentativa de reproduzir a resistência democrática que se fazia no Brasil”, diz-nos. Contudo, ao longo da sua existência, o coletivo passou a refletir a sua localidade, envolvendo-se na defesa dos direitos dos imigrantes brasileiros em território português. O coletivo foi também responsável por uma campanha de pressão pública direcionada às autoridades portuguesas, quando Rosi, uma imigrante brasileira recém-chegada a Portugal, desapareceu sob circunstâncias misteriosas até hoje sem esclarecimentos. A partir daí, Neli ressalta, o coletivo passou também a focar-se na situação do imigrante brasileiro, muitas vezes fragilizado, incapaz de exigir direitos relativos a acordos bilaterais entre Brasil e Portugal, e sem qualquer representação possível que possibilite o conhecimento de seus problemas pelas autoridades brasileiras competentes. Natalia Gomes, outra integrante da velha guarda do coletivo, sublinha que o Vozes no Mundo organizou um questionário com 197 perguntas sobre as condições imigratórias brasileiras, que se destinou a ser entregue a autoridades brasileiras como Anielle Franco, Marcelo Freixo na sua passagem por Portugal. Com a derrota de Bolsonaro, o coletivo, que teve sua motivação na resistência antibolsonarista, reinventou-se, e hoje é, para as entrevistadas, um coletivo de acolhimento a imigrantes. Para Natalia, esse acolhimento não deve apenas ser da alçada das igrejas brasileiras. A esquerda deve se esforçar por criar espaços para a receção e integração de novos imigrantes que venham tentar nova vida em Portugal. Afinal de contas, um imigrante, dependendo da sua situação, pode estar submetido a uma série de vulnerabilidades, como a exploração por conta da ilegalidade, a já conhecida desigualdade das propinas da Universidade de Coimbra, a desinformação quanto aos seus direitos. Raoni Arraes, um membro um tanto mais recente, conta-nos como o coletivo é um espaço aonde ele “pode ser brasileiro”, e dar vazão ao seu sotaque nortenho sem a vergonha ou desentendimento de que pode ser alvo em espaços portugueses. “O Vozes no Mundo é um território brasileiro em Portugal”, e Raoni compreende que é importante ter tais espaços de referências comuns e unidade brasileira. Sua surpresa é nunca ter conhecido tanta gente do Brasil fora do Brasil graças ao Vozes no Mundo. Já para Maria, o coletivo foi um alívio: “Aqui dá pra falar mal do Bolsonaro à vontade”. Ela tinha receio de mencionar suas críticas a Bolsonaro em alguns espaços, pois poderia encontrar algum bolsonarista violento e ter problemas. Conheceu o coletivo numa festa de Carnaval brasileiro, organizada pelo mesmo, e ficou não só pela política, como pelo espaço de debate político e a oportunidade de aprender com estudantes e artistas que participam. As pequenas ações do coletivo têm reverberações misteriosas para Alex Lima. O seu acolhimento físico, psicológico, político e cultural traduz-se eventualmente em ações que acabam por criar uma rede espontânea de suporte para as pessoas que participam e adjacências. Todos concordam quando Neli diz que a coisa funciona muitas vezes espontaneamente, e a boa vontade de quem integra é tal que facilita a logística, possibilitando uma rápida e efetiva organização de seus eventos. Há pouco, começaram a organizar uma sessão de cinema no Liquidâmbar, em que exibem filmes relevantes para a discussão da política brasileira. Além disso, o coletivo acaba por se tornar um espaço de encontro para artistas da cidade, como o é Alex Lima. Raoni e outros integrantes do coletivo acabaram por criar a Revista Baleia, que teve precursão justamente nos encontros poéticos que se davam no interior da rede do Vozes no Mundo. Não se trata apenas de um coletivo pontual, mas já se tornou uma grande família, que sobrevive e continua apesar da instabilidade inerente a uma cidade como Coimbra, que costuma ser apenas um lugar de passagem. Neli conta que a maioria dos antigos integrantes continua a sua relação com o coletivo através das redes sociais, e muitos, quando passam por Coimbra, fazem questão de aparecer nos seus eventos. Visto que é integrado por muitos estudantes, é um espaço aonde o conhecimento acadêmico adquirido na universidade pode “voltar às pessoas”, como formula Natalia, para quem a luta política não pode se resumir à academia e suas publicações, que tendem a isolar a investigação das pessoas que necessitam delas e apartar a investigadora numa “bolha que não é participativa”. De uma resposta à ascensão do bolsonarismo a um lugar de acolhimento e identidade para brasileiros de esquerda em Coimbra, o coletivo parece mais saúde do que nunca. Através das suas gerações, já passaram mais de 120 pessoais, muitas das quais retornaram e fizeram de Portugal suas casas. Acolhimento, identidade, política são palavras-chave para a compreensão do Vozes no Mundo. Como tudo que é vivo, o coletivo sobreviveu às suas primeiras condições com a força e saúde de seus integrantes, o sangue que dá ânimo à sua continuidade. Provou não ser apenas motivado pela resistência monotemática ao bolsonarismo, mas um nódulo de cultura e convívio brasileiro na cidade de Coimbra – como também uma grande, estendida família, que acolhe e acolherá muitos ainda. Longa vida ao coletivo Vozes no Mundo! . . . Texto: Pedro Ribeiro Fotografia: Coletivo Vozes no Mundo Dia 25 de Abril de 2023 – há 49 anos aconteceu a revolução que significaria a derrubada do Estado Novo, regime que se firmou em Portugal desde a aprovação da Constituição Portuguesa de 1933, redigida em parte há não muitos metros do Salão Brazil, onde se reúnem hoje músicos brasileiros e portugueses para um espetáculo em comemoração a esta revolução que tem uma flor no nome: Revolução dos Cravos. Reúnem-se em torno dum coletivo de nome sugestivo, Tanto-Mar; a referência à canção em que Chico Buarque celebra a Revolução dos Cravos é clara, mas há também a sugestão de que este mar, que é tanto, não é tanto assim. Desde o seu início, o coletivo veio colocando o tônus de seu propósito na organização de um espaço de encontro para músicos da lusofonia que, sem tal pretexto, possivelmente nunca se cruzariam. E tem resultado. Entre quem participa temos nomes consagrados do espaço cultural coimbrão. Mas também há quem por aqui não tenha tradição. Alguns são músicos de rua, outros professores. Há iniciantes e veteranos. Nota-se na diversidade do perfil de quem participa a clara intenção de romper certas barreiras que invibilizam e inviabilizam encontros que, apesar de aparentemente remotos, quando acontecem é como se adquirissem o caráter de uma necessidade quase matemática. A comemoração do 25 de Abril é o terceiro espetáculo realizado pelo Coletivo Tanto-Mar. Não pôde deixar de frequentá-la a Rádio Pessoas, que, através da figura de Eron Quintiliano, está intimamente associada à sua existência. Para Eron, o coletivo representa um esforço em direção à unidade, à aproximação de músicos de origens diversas, que põe sempre a possibilidade do cruzamento de diferentes visões de mundo. Se cada qual habitaria em princípio seu universo familiar, no encontro despimo-nos da familiaridade e abrimo-nos à troca e à consequente ampliação dos nossos horizontes. A língua portuguesa, é claro, é a substância que atravessa essas trocas. Keissy Carvelli, que foi convidada para esta edição, refere justamente a isto, sublinhando o paradoxo dessa unidade linguística. Por um lado, diz-nos, o português foi durante séculos uma ferramenta de opressão e colonização; mas em eventos como este ele se torna um ponto comum, condição de possibilidade do encontro na diferença. No interior do que já foi uma das mais cruéis imposições coloniais – a língua – hoje, pensa Keissy, podemos encontrar alguns gérmens revolucionários, que nos dão a ver futuro menos opressivo à língua portuguesa e seu uso. Vânia Couto fala-nos também dessas coisas boas de um coletivo assim: surgem novas influências, mútuas influências entre músicos brasileiros e portugueses. Desta “miscelânea de cruzamentos culturais”, emergem novas interpretações que respondem a uma necessidade que tem crescido: a compreensão entre brasileiros e portugueses, tendo em conta o aumento muito significativo da emigração dos primeiros a Portugal, no que alguns chamam da descoberta de Portugal pelo Brasil. Há muitos músicos de rua a participar do projeto, dentre eles Alex Lima, para quem eventos como este não valem apenas pelo que criam, como também pelo que permitem que surja futuramente. Segundo ele, as ligações criadas em tais espetáculos reverberam para além do coletivo, insinuando em suas sinergias projetos futuros, novas ideias musicais. Trata-se de uma ferramenta que não vale apenas por aquilo que cria imediatamente, mas pelo que é capaz de fomentar, diz Alex. Além disso, o sucesso de público de todas as edições tem mostrado que há espaço para tais iniciativas – as pessoas comparecem para ver o resultado! Miguel Cordeiro menciona que é muito importante que o coletivo tenha trazido artistas de rua para os palcos de Coimbra. Ricardo Brito pensa que o projeto devia se expandir ainda mais. Para ele, a essência do projeto é ser capaz de dar voz aos artistas, e na sua vocação para incluir sempre mais músicos que queiram participar. Luís Nunes dá boas-vindas a um projeto que “finalmente procura unir a comunidade de músicos brasileiros e portugueses”, algo que ele vê como fundamental para a evolução da própria música portuguesa. Nesta simbiose de personalidades, aprendem-se novas maneiras de estar, novas sensibilidades estéticas e nutrem-se outros sentimentos. Felipe Barão também vai nessa direção: há momentos que, para ele, nem dá mais para dizer o que é português e o que é brasileiro. Eis a “amálgama”, palavra que Barão usa para definir o que acredita ser a metáfora central da iniciativa. Além disso, Barão tem também uma visão mais pessoal da questão: é um encontro de pessoas que produz novos aprendizados, é uma troca de experiências pessoais em torno de um coletivo. E é assim que para ele a coisa pode funcionar como funciona. Na amálgama, coisas distintas se misturam e se transformam em algo novo. Tiago também pende para aí: partilhar experiências, conhecer outras abordagens musicais, novas pessoas, nova música. Eis o acrescentar mútuo. No início, Luis Formiga via isto como mais um projeto a que foi convidado, mas desde o fim do primeiro concerto do coletivo, ele percebeu que era mais do que isso. Diz-nos que sempre teve forte relação com a música brasileira, mas que já havia algum tempo que estava um tanto afastado dela. O projeto fê-lo voltar aos ritmos brasileiros. Para ele, há algo de curioso na organização do evento, pois ele não pôde prever a energia dos concertos pelos ensaios. É como se, quando subissem no palco, as pessoas adquirissem ainda um outro ânimo, que não se deixava entrever nos ensaios. Pedro Renato é bem sucinto nas palavras que dedica, ainda que seja uma sucintez carregada de entusiasmo: um Sol maior para Si, amigo! Quem vos escreve também participa do coletivo. É complicado dizer sobre aquilo de que se participa sem soar enviesado, ainda mais quando se é encarregue de transpor as palavras de outrem para um texto coerente. Os textos da Rádio Pessoas Frequenta raramente transcrevem ao pé de letra o dito pelos entrevistados, preferindo arriscar a paráfrase, para fazer tentar unir a boca do entrevistado ao ouvido de quem entrevista. Contudo, tendo em conta que neste texto seria eu também um entrevistado, dou-me a exceção de deixar transcritas, tais quais foram enviadas, as palavras de Rita Maia sobre o sucedido, pois elas expressam bem por outra boca o que eu não poderia, sem suspeita, falar pela minha própria: O espaço de encontro entre criativos prevê-se sempre repleto; de mensagens, de improviso, de novos brotos. O Colectivo Tanto Mar trouxe consigo o privilégio de aproximar universos pessoais unificados pela irmandade linguística. Mas fez muito mais que isso… criou laços emocionais que extravasam o palco, convidando todos os públicos a recordar, numa só voz, cancioneiros que nenhum mar separa. Um abraço feito de música, músicos e cultura(s) com portas escancaradas. . . . Texto: Pedro Ribeiro Fotografia: Pedro Bairras |