De volta ao Atelier A Fábrica, a Rádio Pessoas veio dar sua vista de olhos na jam session que nela acontece todas as terças-feiras. Um dia incomum para música ao vivo. Fábio, um dos funcionários da casa, diz-nos isto mesmo: em plena terça-feira, dar espaço a quem quer dar e receber música. A arca da Fábrica foi, aos poucos, recebendo o pessoal - de pingo a pingo, a casa lotou, muita gente em semicírculo à volta da guitarra, do baixo, da bateria e do microfone que estavam lá, disponíveis a quem quiser participar. O espírito é muito simples, diz-nos Fábio. É espírito de dádiva. A casa enche, as pessoas vibram, se expande um clima de partilha pelo retângulo carregado de arte que é a casa que reverbera essa jam, e que por ela é reverberada.
À procura de faces novas na participação musical, encontramos Olena, que topa dar umas palavras para a coluna. É a sua primeira vez nesta jam. Gostou do clima “bluesy, jazzy”, e elogiou o fato de que, mesmo havendo músicos bons no lugar, o pessoal se preocupa em manter um “middle range”, para que toda gente possa participar, independente das diferenças de habilidades. Encantou-lhe o clima familiar d’A Fábrica, com seus sofás confortáveis e sua iluminação meia-luz. “É um palco aberto à improvisação mesmo!”
Também nem só de músicos vive a música. Trocamos uma ideia com a malta que vem aqui pra ouvir, se divertir. João Ramos relembra do Aqui Base Tango, uma casa noturna de Coimbra que fechou há algum tempo. Diz que aqui sente o mesmo ambiente. As pessoas são simpáticas, há um ar de liberdade atravessando o espaço. Ele ama falar e conhecer pessoas, e aqui é um bom lugar pra isso! Já Henrique Gaspar nota que, a quem trabalha, um momento como este, em plena terça-feira, é uma oportunidade pra descomprimir. Num ambiente de livre expressão, em que se encontram pessoas que têm interesses semelhantes, fica mais fácil relaxar. Ao longo do tempo, aponta Henrique, tem se consolidado uma cena musical muito bonita por aqui, uma "bolha aberta, sempre pronta a receber”. A malta que organiza a jam foi um tanto mais breve na expressão, mas não menos interessante. “A essência disto são os artistas, em primeiro lugar”, diz Fred Biscaia com confiança. A música muda de semana a semana, pessoas diferentes aparecem, mas a arte está sempre no centro. Catipanga é muito claro: há liberdade e expressão máximas, sem restrições. Afinal de contas, é disto que se faz boa música improvisada. O seu é um sentimento de realização ao ver a jam acontecer. A galera grita, assobia, dança livremente ao som de música ao vivo improvisada. Ao menos em Coimbra, não se vê muito disto. Desde a invenção e a sofisticação dos meios de reprodução musical que a música ao vivo para dançar tem ficado cada vez mais a cargo dos DJs. Não que isso seja mau, mas é feliz ver tanta gente a dançar para música ao vivo, ainda por cima improvisada. Todas as pessoas com quem falamos mencionaram as virtudes deste evento ao referirem as palavras liberdade, expressão e espaço. Sentem-se como se Coimbra estivesse carente de lugares onde a expressão livre toma a linha de frente de um momento, permitindo que se exercite essa liberdade que, formalmente garantida, tem tido cada vez menos oportunidade de se realizar concretamente. Entre as linhas afunkalhadas do saxofone, os improvisos vocais, a bateria delirante, o baixo elétrico exato, respira-se vontade de fazer, de dar a ver, de tornar visível o que às vezes, por falta de oportunidade, acaba por ficar só dentro do peito e da cabeça da galera. A aderência entusiasmada do público dá a entender que, realmente, precisamos de mais espaços onde a arte é espontânea, viva e presente, não museificada para os fins da justificação institucional, da pantomima oficiosa dos eventos milimetricamente formalizados. Nas palavras de um participante que preferiu não se identificar: fazer música é ser mediador de cura. As pessoas podem entrar aqui um pouco cabisbaixas, mas quando a música bate, ganham energia e, ao fim da noite, saem daqui felizes. Parece que a juventude pede por espaço para respirar e, com o ar que inspirasse, dizer o que anda a lhe passar pela alma. Aqui isto acontece, nas pinturas e na música que se fazem todas as terças-feiras, na tal da Jam do Atelier A Fábrica. Apareçam! . . . Fotografias: Guilherme da Fonseca P.S.: Tanto fotógrafo quanto quem vos escreve acabaram por não conseguir cobrir parte do acontecimento. Justamente aquela parte em que estavam ocupados demais tocando. Como disse Fred: rock’n’roll! Está a se desenvolver um novo estúdio em Coimbra. Um estúdio que começa do longe para o perto: primeiro, projetos internacionais, depois a ocupação da sua cidade natal, Coimbra. Conversei com Ivo Simões e Guilherme da Fonseca sobre o processo de emergência e consolidação da ideia do Micrologus Studio. Os dois vêm de experiências e aptidões distintas. Guilherme está mais focado na composição e pesquisa musical. Cresceu rodeado das artes, diz. Sua mãe foi professora de belas artes e artista ela mesma, então desde muito cedo Guilherme se acostumou a pensar e fazer arte. Começa nas artes visuais, às quais ainda está ligado. Mas logo inicia sua lenta transição para a música. Um dia na escola pede a uma colega que lhe deixe experimentar o violão. Passa a estudar o instrumento, e não se separa mais dele. Ainda muito jovem ingressa na escola de música Sítio de Sons, aonde passa a aprender também o piano, além do violão. Foi transitando por projetos de metal e post-rock, e atingiu alguma relevância local na banda Cavemen, um projeto de rockabilly que ajudou a fundar. Estudou violão clássico no Alentejo, aonde morou por algum tempo, pela Escola das Artes de Sines. Voltando a Coimbra, inscreveu-se num curso na escola de música Tone, encabeçada pelo guitarrista de jazz João Freitas. Guilherme conta que seus interesses passaram a se voltar não propriamente à educação formal, mas à pesquisa pessoal. Aos poucos, o desejo da composição, contrapontual e polifônica, foi crescendo em seu horizonte. Morando em Coimbra, ajudou a fundar a banda Saracarmen, em que participou no piano. Muitos membros moravam na mesma casa, e Guilherme lembra que essa influência mútua fê-lo estudar teoria musical com mais afinco. Almir Chediak e George Russell fizeram parte do seu cardápio, e aqui começa uma investigação que irá guiar Guilherme aos seus coros de quatro partes e sua relação com a música erudita. A vontade de escrever peças mais complexas e maiores fá-lo voltar à pauta musical. Já a morar na República Prákystão, começa seus primeiros exercícios de contraponto e composição em quatro partes, que depois seriam um dos carros-chefes do estúdio. Entre os livros de Schoenberg, o diálogo de Fux Gradus, Guilherme vai tecendo suas vozes; aqui já percebemos que o Micrologus é um estúdio criativo, com vocação para a composição. Já Ivo Simões está mais inclinado à parte técnica de gestão do projeto. Interessou-se pela música “apenas como fã”. Ainda tentou cedo aprender o violão, mas não deu continuidade ao seu estudo. Estuda Turismo na Universidade de Coimbra, e até estagia na área, a planear fazer um mestrado em Gestão. Ainda no seu estágio, decide se inscrever no curso de técnico de radiodifusão da Rádio Universidade de Coimbra. Conta que passa a mergulhar no universo da rádio, interessando-se por tudo que está relacionado aos meios que permitem o som acontecer. Não à toa, ainda tira o curso de produção de rádio também pela RUC. E com o contato com o som, vem o desejo de fazer um som. Ivo se inscreve no Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra. RUC e GEFAC coabitam, e os interesses têm poucas escadas de distância. Aprendeu baixo no GEFAC, e hoje é baixista do seu grupo. Sua vida profissional passa a transitar cada vez mais pelo meio do som, da arte e da música, mas Ivo tem temperamento organizado e vocação para a gestão – o que falta a muitos artistas. Não satisfeito com esses mergulhos, inscreve-se em aulas de guitarra de Coimbra, na Secção de Fado da Associação Académica de Coimbra. Entre GEFAC, SFAAC e RUC, Ivo vai traçando sua contribuição ao ecossistema musical da cidade. Guilherme e Ivo se reencontram na Prakystão depois que o primeiro passou uma temporada na França a trabalhar. Os dois convergem no interesse de fazer acontecer um videojogo em Coimbra, unindo esforços para tentar realizar esse projeto. Guilherme, enquanto na França, investigou sobre modelagem 3D e motores de jogos, voltando ao visual das artes. Ivo tinha interesse em se envolver com projetos interessantes e dar suas aptidões administrativas a coisas de que gostasse. Daí surge o protótipo do estúdio. Foi o jogo que lhes fez ver a necessidade de angariar recursos, meios para a realização dessa ideia. Nesse percurso, passaram a oferecer serviços na internet. Aos poucos, com o sucesso da empreitada, o jogo foi passando ao segundo plano. Eles perceberam que poderiam ocupar alguma faixa no mercado musical, e conseguir recursos para realizar até mesmo projetos pessoais. Unem esforços ainda com outra fundadora e investidora, Mari Fonseca, justamente na época em que suas ideias começam a se voltar para o mercado da música. Neste período, oferecem transcrições musicais, por exemplo. Guilherme conta que transcreveu a trilha sonora inteira de um jogo de Pokémon. Em outro freelance, gravaram um coro na língua neo-khuzdul, língua criada no universo do Senhor dos Anéis. Isso lhes dá experiência, e começam a ambicionar mais. Conforme foram trabalhando, foram “esculpindo seu próprio nicho”, como diz Ivo, enquanto os coros de Guilherme passam a ser muito requisitados. A ambição passa a ser integrar projetos cada vez mais amplos e duradouros, que envolvam não só composição e produção, como também investigação científica. O desejo de colaborar também cresce, e começam a surgir parcerias com outros estúdios, o Camaleão, situado em Lisboa; e o Moebius, estúdio de Buenos Aires. Eu lhes perguntei qual, para eles, era o essencial do Micrologus. Para responder a isso, eles falaram de quatro projetos, realizados ou em andamento, por quais têm especial apreço, por representarem o que querem para o futuro. Quem imaginaria que em Coimbra haveria um indivíduo, fora da universidade, a fazer traduções entre diferentes sistemas de notação musical? Guilherme está envolvido no projeto de um investigador que quer trazer melodias árabes antigas à vida. Seu trabalho é, além de trazer antigas melodias para a notação musical corrente, rearranjá-las para quatro vozes, em peças inspiradas pela estética renascentista e barroca. No corpo do artigo, vocês podem ver uma dessas pautas. O Micrologus lançou recentemente um trabalho autoral de Guilherme, uma peça de sua composição, arranjada para um “viola da gamba consort”, um tipo de formação instrumental tradicional, em parceria com o maestro argentino Juan Klas. Neste projeto se despejam regradamente anos de investigação musical, entre áridos livros sobre primeiras, segundas e terceiras espécies de contraponto. Pra quem desconhece, o contraponto é uma disciplina musical em que o que se quer é combinar linhas melódicas distintas, mas que soem bem quando tocadas em simultâneo. Um outro projeto interessante, diz Guilherme, coloca o estúdio como “ponte para o som”. No momento estão a fazer toda a maquete de uma adaptação musical de um livro infantil alemão, em parceria com o próprio compositor. Além de tudo isso, o estúdio também está em parceria com o Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, ajudando a produzir materiais didáticos sobre filosofia em audiovisual. Quais os planos para o futuro? Ivo diz que quer retornar à sua casa, Coimbra. Expandir o estúdio no seu nível local e realizar coisas fixes na cidade, tentando criar um espaço mais hospitaleiro a projetos diferentes. Guilherme corrobora, dizendo que Coimbra tem uma ótima estrutura e pode ser muito mais do que é culturalmente. A palavra de ordem é: tornar Coimbra melhor para artistas e profissionais da área, dinamizando o circuito cultural da cidade e arriscando fazer diferente. Ivo parece resumir tudo quando diz que a ambição é participar de projetos cada vez mais coletivos, em que a divisão do trabalho contribui realmente para o resultado final: que é o quê? Arte. Imagens gentilmente cedidas pelo Micrologus Studio |